Transtorno da ansiedade coletiva

Quem ler meu livro vai notar que um tema bastante recorrente é a questão do tempo e do foco da atenção no momento presente, explicável por uma necessidade minha de evoluir nesta capacidade e um desejo quase irracional de apreender e congelar momentos. A propósito, o primeiro poema chama-se “Aqui e Agora”, que hoje me parece o título mais clichê do universo, e confesso que chega a me dar uma certa náusea.

É muito fácil cacarejar o enjoativo chavão #gratidãopeloaquieagora quando se está de férias, em um resort paradisíaco à beira-mar, ou então em um retiro de silêncio e meditação no alto da montanha. Quero ver é conseguir manter o foco no dia de hoje quando se vai ao shopping resolver o presente do dia das crianças, e se depara com uma árvore de Natal, colorida, frondosa e piscante, anunciando não somente a chegada desta importante data festiva para os que a comemoram, mas também o final do ano que se aproxima, te recordando – quase que en passant – de que os uniformes das crianças já estão pequenos (e totalmente imprestáveis há pelo menos seis meses), da data de matrícula para os esportes e atividades extra-curriculares, da programação das férias escolares, do checkup anual que você se prometeu fazer no início de cada ano. Sim, passamos literalmente um quarto do ano já planejando o seguinte.

E isto só tende a piorar, pois o transtorno da ansiedade coletiva irá fazer com que, no ano que vem, estes preparativos comecem ainda mais cedo, muito provavelmente já no feriado de 7 de Setembro. No trabalho, ninguém mais quer saber o quanto vendemos hoje. Isto é o óbvio ululante e já virou old news faz tempo, antes mesmo que chegasse o relatório com os números oficiais. Todas as reuniões, agora, giram em torno da projeção de quanto iremos vender no próximo mês, no próximo trimestre, no próximo ano, sem falar daquelas reuniões no melhor estilo “mãe Dinah corporativa”, quando a ideia é traçarmos um plano bem concreto para os próximos cinco a dez anos. Ainda bem que hoje em dia nossas ferramentas estão muito mais avançadas do que a antiga bola de cristal. Mas mesmo quando o assunto são férias (e viagens), não podemos nos permitir relaxar totalmente, e somos obrigados a pensar sempre à frente do tempo.

Apesar de os passaportes terem sua data de validade claramente estampada na primeira página, precisam ser renovados, no mínimo, seis meses antes, seja por uma criativa pegadinha das polícias de imigração do mundo, seja porque o tal transtorno da ansiedade não os poupa também. Mas, de fato, nunca saberemos se essa história da validade do passaporte é mito ou verdade, pois a realidade é que estamos renovando nossos documentos e planejando nossas viagens com muito mais do que seis meses de antecedência, até para evitar que o preço das passagens aéreas tomem as mesmas proporções do preço de um apartamento novinho em bairro nobre de São Paulo. Isso sem falar do quebra-cabeças em que se transforma a arrumação das malas, pois as nossas, ao invés de recheadas de dinheiro – como algumas que de quando em vez surgem nas telinhas da TV para testar nossa capacidade de acreditar nas coisas mais escalafobéticas – são recheadas no máximo de gordas faturas do cartão de crédito. As listas de “To Do” estão ficando cada vez mais sofisticadas. A minha, por exemplo, tem diversas sub-categorias: afazeres pessoais, da casa, do trabalho, dos filhos, não necessariamente nesta ordem de prioridade.

Absolutamente todas as minhas amigas têm suas estilosas agendas e smartphones recheados de futuro e antecipação. Cada uma com sua metodologia própria de gestão, mas todas concordando que a macro-tendência é que a agenda continue crescendo de modo desgovernado, com cada vez mais e mais coisas a fazer, mesmo que todas nós tenhamos o mesmo prazer – um verdadeiro deleite – em riscar uma tarefa da lista quando finalmente a completamos.

Continuo fã da linda filosofia zen-budista com seu ensinamento profundo de tentarmos acolher e aceitar o momento presente tal qual se apresenta a cada instante, independente do que havíamos vislumbrado ou planejado cuidadosamente para ele, mas hoje entendo que não passaria de uma grande ilusão tentar impedir nossa cabeça de fazer suas constantes, necessárias e inevitáveis incursões no futuro, e que isto não necessariamente precisa tirar a nossa paz de espírito.

Shelly Bronstein – Autoterapia


Shelly Zaclis Bronstein

Shelly Zaclis Bronstein escreve crônicas e poemas, é autora do livro Autoterapia e trabalha como executiva de marketing de uma grande multinacional na área de tecnologia. Mora em São Paulo, é casada e mãe orgulhosa do Felipe e da Camila.

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