O home-office e as formigas

Hoje bati meu recorde de reuniões em um mesmo dia.  Devo ter tido umas dez ou onze, mas pareceram cinquenta e duas. Os dias sem carro, sem trânsito, sem deslocamentos podem ser tão, mas tão produtivos, que em algum momento eles simplesmente deixam de ser. Em uma das reuniões, fiz um comentário que por si só já poderia ser considerado bastante nonsense, isso se eu não tivesse usado, sem querer,  a análise que havia preparado para a reunião anterior.  Provavelmente meus interlocutores estavam mais assoberbados do que eu, ou talvez pagando seus boletos, finalizando suas compras semanais no site do supermercado ou ajudando seus filhos no homeschooling pois a coisa toda acabou passando batida e todos desligaram educados me agradecendo pelos ótimos insights.

Depois do que me pareceu ser a trigésima nona call do dia, saí no jardim para me esquentar com o solzinho de fim de inverno. A grama estava linda, verde e cortadinha, mas foi um pequeno formigueiro na lateral, tirando a harmonia do todo, que capturou meu olhar. As formigas são bichos tão simplórios, uma estrutura tão mínima e frágil que chega a chocar quando as observamos em atividade. Mesmo com aquele corpo vulnerável, elas possuem uma organização social tão milimetricamente complexa, estão sempre em movimento, andando para lá e para cá em fila indiana. Será que as formigas têm alguma noção da impermanência da vida?   A previsão do tempo fala de chuva forte em um par de dias, mas mesmo que não chova, dificilmente sairão incólumes da pisada das crianças correndo desavisadas pelo jardim ou da visita do jardineiro, que vem todas as semanas com a nobre missão de organizar um pouco a natureza.

Achei aquilo tudo de uma melancolia tão profunda…A pequena trilha aberta por entre a grama, a fila indiana, a formiga rainha com seu senso tão claro de propósito, carregando sua pesada folhinha por centímetros e centímetros a fio, tão iludida com um empreendimento que provavelmente nunca verá concretizado. Mas talvez seja exatamente aquele senso de propósito que traga graça para sua breve existência, vai saber?  Descobri que as formigas vivem em média três anos, mas que não são inferiores.  Pelo contrário, elas podem ser consideradas a espécie de maior sucesso ecológico e representam quase 20% de toda a biomassa animal.  O peso de todas as formigas do planeta supera o peso da humanidade, comprovando de um jeito torto, que talvez elas tenham dado mais certo do que nós na escala evolutiva. De certa forma, nós vivemos assim como elas: seguindo as trilhas de todas as que já passaram por ali antes.

Achei melhor encerrar o tema, esquecer essa divagação kafkiana barata de fundo de quintal e voltar para a minha quinquagésima reunião do dia, antes que eu resolvesse lembrar que estou sentada em um pedaço de terra, girando no meio de um espaço infinito e vazio, em um universo que durará para sempre, mesmo quando eu, o formigueiro e o planeta não estivermos mais aqui para contar história.

 

Shelly Bronstein – https://lercronica.blogspot.com/


Shelly Zaclis Bronstein

Shelly Zaclis Bronstein escreve crônicas e poemas, é autora do livro Autoterapia e trabalha como executiva de marketing de uma grande multinacional na área de tecnologia. Mora em São Paulo, é casada e mãe orgulhosa do Felipe e da Camila.

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