Rewind

Outro dia meus filhos estavam revirando um armário bagunçado e encontraram uma máquina de filmar.  Não se pode dizer que fosse antiga pois era daquelas pequenas, digitais, modernas até há pouquíssimo tempo, mas que, devido à velocidade da transformação tecnológica e da hegemonia dos smartphones, acabou virando uma relíquia precoce para essa geração pós-i-phone!  Foi a filmadora com a qual registramos os primeiros anos das crianças, talvez por termos relutado em aceitar que um único dispositivo fosse substituir todas as tralhas eletrônicas em que havíamos investido poucos anos antes.  Para mim, ainda era um gadget de última geração, mas para eles entrou rapidamente para o hall das engenhocas divertidas e curiosas do passado, no mesmo patamar da máquina de escrever do bisavô deles, uma Remington de 1926, recentemente mandada restaurar pelo avô, meu digníssimo pai.  Junto com a filmadora, eles encontraram também uma caixa plástica com alguns mini-DVDs que armazenavam as emoções dos primeiros dias, dos primeiros passeios, das primeiras viagens, principalmente do primogênito – dado que a mais nova chegou dois anos depois, quando mesmo slow-adopters, como nós, já carregavam seus i-phones para todos os cantos.  Além de que caçulas estão fadados mesmo a uma midiateca reduzida – lidemos com isto!

 

Com a mágica caixinha em mãos, começamos a planejar a data da esperada sessão de cinema, com direito a pipoca, para revisitar as memórias que, apesar de ainda não formarem teias de aranha, pareciam perdidas em um passado longínquo, principalmente para as crianças. Nem precisei de uma tecla rewind para poder recordar o encantamento que senti, há algumas décadas, no dia em que meus pais desenterraram um curiosíssimo projetor de filmes Super 8, e fizemos todo um rearranjo na sala de estar, afastando móveis e tirando quadros da parede para projetar algumas das incríveis e amareladas lembranças ali escondidas. Sabia que aquele poderia ser um momento especial para os pequenos, só não sabia que seria um momento tão poderoso para mim também.

 

Entre uma pipoca e outra, foi o dia em que me caiu a ficha de que meus filhos já não são mais folhas em branco.  Apesar de ser um insight bastante óbvio, ainda não estava elaborado na minha cabeça.  Mas os comentários e as risadas deixaram claríssimo: eles já carregam um passado, e já sustentam suas próprias saudades e nostalgias. Foi também o dia em que me dei conta – não pela primeira, mas pela enésima vez –  de quanta vida acontece em um espaço tão curto de tempo.  Quanta intensidade, quanta profundidade, quantas e quantas camadas de existência podem habitar uma fase tão curta da vida. Foi também quando me surpreendi por me perceber tão igual, e ao mesmo tempo tão diferente de quem eu era naqueles tempos. Enfim, foi um momento poderoso pela riqueza de sensações que me trouxe, sentimentos estes que claramente tive muita dificuldade de expressar em palavras – perdão, meu caro leitor!  Mas se o cinema tem o poder de evocar emoções que às vezes não conseguimos nomear, que dirá quando o filme é sobre nossa própria vida?

 

Por Shelly Zaclis Bronstein – Autoterapia


Shelly Zaclis Bronstein

Shelly Zaclis Bronstein escreve crônicas e poemas, é autora do livro Autoterapia e trabalha como executiva de marketing de uma grande multinacional na área de tecnologia. Mora em São Paulo, é casada e mãe orgulhosa do Felipe e da Camila.

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