Há pouco mais de um ano, compramos uma calopsita, fruto de uma negociação (mal sucedida, agora vejo) com meus filhos em que o objetivo inicial (deles, é claro!) era a compra de um cachorro. Na época, pareceu uma estratégia ganha-ganha, mediante a qual eles realizariam o sonho do bichinho de estimação, e nós não teríamos o trabalho e o esforço que envolve criar um novo filho, no caso um de quatro patas. Mas logo na primeira semana, lembrei do ensinamento de um sábio e antigo professor: a ideia da coisa é sempre bastante diferente da coisa em si! A ideia de acordar ao som singelo e doce do canto de passarinho logo passou ao entendimento de que o canto (que às vezes mais parece um grito) não cessa jamais, em um desrespeito solene à dona da casa, que necessita de largos momentos de silêncio a fim de preservar sua sanidade mental. A ideia da convivência harmoniosa entre bicho e gente logo deu espaço a sucessivas lamúrias (minhas, no caso) sobre penas espalhadas pela casa, fezes – quase imperceptíveis, o que as torna ainda mais terríveis – nas roupas das crianças e no chão. De repente, me peguei tendo profundas discussões zôo-filosóficas com meu marido sobre a natureza da calopsita. Ele, defendendo a ideia de que a ave precisa do convívio familiar, devendo, portanto, ter a liberdade de não apenas perambular solta pela casa durante todo o dia, mas ser nossa companheira em passeios a parques e shoppings, como se fosse um Cocker-spaniel alado. Já eu, tentando convencê-lo, inutilmente, de que a natureza de qualquer pássaro é o vôo, é a liberdade nas alturas e, no caso dos domesticados, a gaiola, com saídas disciplinadas (ao invés da sala de estar), já que aquela oferece um espaço razoavelmente generoso para um bicho de tão pequeno porte. A coisa toda já estava degringolando rapidamente para um impensável “ou eu ou a calopsita!”, até que um episódio transformador se deu num dado domingo. Saímos todos de casa para um compromisso impróprio para bichos, e ao invés de deixar a gaiola do Picles (é assim que o chamamos) na área de serviço, onde fica habitualmente, meu marido resolveu deixá-lo na varanda, com a portinha aberta como de costume, certamente para que pudesse apreciar o movimento dos pedestres e a beleza da vista! Quando voltamos, poucas horas depois, nem sinal da ave. Ela havia batido asas e voado pela sacada, sem deixar nenhum rastro ou bilhete de despedida. Depois de uma busca intensa pelo térreo do prédio, meu marido continuou a procura pelo bairro (bastante arborizado e abarrotado de pássaros, diga-se de passagem) e eu, mais realista com relação às chances de sucesso daquela caçada, subi para consolar meus filhos, que a esta altura já estavam desolados, chorando copiosamente um choro sofrido, genuíno e triste de quem vai sentir saudade de um grande companheiro. Eu tentava inutilmente arrancar das entranhas qualquer palavra que amenizasse um pouco aquela dor, procurando dominar a minha própria, que agora me abatia profundamente, principamente pela culpa de ter sonhado tantas e tantas vezes com aquela libertação (mais minha do que da calopsita). Ficamos assim, abraçados na nossa tristeza por alguns minutos até que a cena surrealista se deu. Meu marido, que neste momento exalava os ares e exibia o porte do mais incansável e destemido super-herói da liga, adentrou o apartamento, orgulhoso com seu fiel escudeiro Picles no ombro. Contou que depois de voltas e voltas pelo quarteirão chamando pelo seu nome, este apareceu voando do alto da árvore de um prédio próximo, direto para sua mão, feliz e aliviado por finalmente ter encontrado seu dono (melhor dizendo, seu parceiro). Pois é…Como já dizia Shakespeare, realmente há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia. Parece que certas pessoas realmente nasceram com asas para voar, algumas calopsitas têm alma de Poodle, tudo entremeado com alguns pequenos milagres que simplesmente não tem explicação.
Shelly Bronstein – Autoterapia