“(…) por mais semelhantes ou dessemelhantes que sejam seus modos de vida, seu caráter ou sua inteligência, a mera circunstância de sua transformação numa massa lhes confere uma alma coletiva, graças à qual sentem, pensam e agem de modo inteiramente diferente do que cada um deles sentiria, pensaria e agiria isoladamente”, Le Bon.
Surreal o que acontece no estado do Espírito Santo. Bem de perto, em Cachoeiro de Itapemirim – cidade paralisada pela histeria coletiva – uma mistura de sentimentos divide a população que, de um lado, trancada em casa, aguarda o desenrolar das manifestações de familiares da polícia militar. De outro, o vandalismo que tomou conta da cidade sem lei.
É fácil ancorar-se no discurso simplista de que um níquel sem a coroa, a cara cai para cima. Ou melhor, sem o gato os ratos fazem a festa. Mas, seria leviano de minha parte uma análise tão superficial. Acredito que além da “coroa”, a moeda da sociedade tem duas “caras”.
Para explicar o comportamento individual em contextos grupais recorro, como sempre, aos livros de psicanálise. Não há como deixar de abrir e reler “Psicologia das massas e análise do eu” numa situação como esta. Freud, na obra, cita o francês, Gustave Le Bon. Ele diz que na massa desaparecem singularidades.
Os indivíduos são compelidos a agirem de acordo com a maioria. Isso foi presenciado no saque coletivo nas lojas da cidade. Além, é claro, de bandidos armados, muitas famílias aproveitaram para saquear e destruir o patrimônio de outros.
Antes de mais nada, a fala equivocada de que os cidadãos de bem ficam em suas casas enquanto os bandidos estão nas ruas é, no mínimo, inadequada. Vejamos se alguns desses vândalos agiriam assim isoladamente, ou se, pessoas que estão em suas casas, ao juntarem com outros, não fariam justiça com as próprias mãos. Dois pesos com a mesma medida.
O psicanalista Christian Dunker comentando o livro “Violência”, do esloveno Slavoj Zizek, recorre à história para explicar quem eram os vândalos (bárbaros germânicos que em 455 saquearam Roma). Na verdade, o termo quer dizer andarilho. Além disso, explica, a palavra foi introduzida por um bispo francês, em 1794, para denunciar a violação do patrimônio artístico cultural promovida pela Revolução Francesa no contexto de seu ódio ao passado.
Talvez, como no título da obra, “Somos todos vândalos?”, de Dunker, esse questionamento seria pertinente agora. Se o conceito foi empregado num contexto histórico para nomear uma conduta de ódio, nada mais justo que empregá-lo nas três instâncias envolvidas no ambiente urbano caótico. O Estado, os que estão em casa e aqueles que estão na rua… Todos vândalos.
Hipocrisia cobrar da população a “moral” e os bons costumes se o “Estado” não cumpre as leis. Cada um vai justificar sua conduta individual se protegendo na massa ou instituição. Na verdade, o que estamos assistindo aprisionados atrás dos muros dos camarotes de nossas casas é o reflexo de nossa sociedade. Na maioria das vezes, a corrupção e o descaso com o outro vêm de berço.
Isso mesmo, não é só a massa que depreda o comércio. O Estado que se entranha na burocracia e omite socorro a quem necessita e quem, nas redes sociais, propaga falsas notícias causando um sádico sofrimento aos mais desesperados também têm sua parcela de culpa. Mas, cabe ressaltar que, o Estado (conjunto de órgãos que deveria fornecer à massa o mínimo para sua sobrevivência) é o principal responsável pela desordem. Aliás, a quem interessa manter a ordem?