“Os artistas e os escritores criativos são aliados muito valiosos à pesquisa da psicanálise (…) Estão adiante de nós, gente comum no conhecimento da mente”, Freud.
Certa vez discutindo um caso clínico com colegas surgiu a oportunidade de sustentar a ideia de que o analista é, sobretudo, um leitor. Um atento leitor da poesia do inconsciente. Ele escuta, na clínica, a associação livre, atos falhos, chistes ou os sonhos, aparentemente desconexos, e, como se fossem emaranhados de palavras soltas num papel… Organiza, pontua, lê e faz o analisando interpretar. Declamar as fantasias no divã é o que a maioria faz ao entrar em análise.
Ouso dizer; o não dito em análise é de ordem do discurso. Da língua. A transferência, o impasse, a direção do tratamento e desejo do analista fazem parte do conjunto da obra. O analista que não valoriza o verbo “ler” não tem predicados favoráveis. Muito menos dará conta de entender o que significa o “significante” lacaniano (para ele a linguagem seria constituída essencialmente de significantes e os significados não seriam estáveis. Deslizariam na cadeia de significantes…).
Isso não vem ao caso aqui, o que importa, realmente, é que sem a arte, a leitura e a interpretação, a psicanálise fica engessada num modelo dogmático. E isso, desculpe-me, não é psicanálise.
Há uma crítica – louvável para a comunidade psicanalítica – sobre a tradução da obra de Freud. Algumas dessas advertências estão, justamente, no sentido que as palavras, originais em Alemão, teriam se fossem traduzidas fielmente. Ora. Tenho lá minhas ressalvas quanto a isso. Penso que o texto deve ser trabalhado. O sentido quem dá é o emprego da técnica literária, mesmo sendo obras de não-ficção. Se não fossem as traduções, bem escritas por sinal, parciais (não tradução imparcial) talvez os textos não chamassem minha atenção e a transmissão não aconteceria.
Freud escrevia bem de propósito. Com o intuito de que suas palavras ganhassem imortalidade. Ele era um leitor voraz. Sua biblioteca, em Viena, abrigava cerca de 20 mil títulos. De Shakespeare a Dostoievski. Odiada ou não, a qualidade dos textos do pai da psicanálise é inquestionável. Isso nos torna leitores (escutadores) capazes de, a partir da objetividade do discurso do analisando, ler a subjetividade e simbolizá-la. Esta artimanha é nata no poeta.
Benjamim Silva, em 1938, no livro “Escada da vida”, inseriu o famoso soneto “O Frade e a Freira”, que faz uma conexão impossível: desejo, amor e perdão celestial entre amantes lendários. A lenda é motivo para discussão acadêmica até hoje, contudo, o amor de um sacerdote e uma religiosa, culturalmente reprimidos no plano da realidade, principalmente na primeira metade do século XX, encontrou redenção na sublimação:
“Diz a lenda – uma lenda que espalharam –
Que aqui, dentre os antigos habitantes,
Houve um frade e uma freira que se amaram…
Mas que Deus os perdoou lá do infinito,
E eternizou o amor dos dois amantes
Nessas duas montanhas de granito!”
Na época em que o poeta cachoeirense escreveu esta obra primorosa, Freud ainda estava vivo e, com ele, a primeira geração de psicanalistas engatinhava pelas instâncias psíquicas já amplamente exploradas pelos poetas.
Lacan, no Seminário 15, nos alerta que “(…) a psicanálise faz alguma coisa. Faz, mas, não basta, o essencial, o ponto central é a visão poética propriamente dita, a poesia também faz alguma coisa. Observei em outro lugar, assim de passagem, por ter me interessado um pouco pelo campo da poesia, quão pouco temos nos ocupado com o que isto faz, e a quem, e sobretudo, – por que não ? – aos poetas”
Gosto da comparação de Fátima Cristina Monteiro de Oliveira no trabalho intitulado “Uma interface entre psicanálise, sonhos e poesia brasileira” em que ela aproxima a psicanálise da obra de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Bom, ela diz o que o poeta e o psicanalista ocupam-se de tornar o indizível, dizível. E, complemento, para isso há um esforço sobre-humano por parte dos analistas, ao mesmo tempo em que os poetas estão um passo à frente. Sempre!