Este texto foi publicado no HuffPost Espanha antes de o governo espanhol limitar a circulação de pessoas ao essencial. O momento retratado se assemelha ao vivido hoje no Brasil.
É meio-dia e duas senhoras estão conversando numa rua do bairro Puente de Vallecas, em Madri. Elas estão voltando das compras de supermercado, e uma é acompanhada por sua cuidadora, que é latino-americana. O sol da primavera brilha no céu, e as vizinhas não hesitaram em sair à rua, apesar da crise do coronavírus, mas garantiram que estão tomando todas as precauções necessárias. Elas não podem ir ao centro de convivência da terceira idade porque está fechado, mas se negam a ficar em casa.
“Me tiraram o centro de convivência. Acabei de ir à piscina para ver e está fechada também. Se eu não sair para a rua, vou morrer”, diz a mais velha das duas, que tem quase 80 anos e está visivelmente indignada. Elas são avós típicas de bairros como este – com seu carrinho de compras carregado, seus óculos de sol, elas fazem uma parada para cumprimentar cada vizinho que passa. “A gente tem que pelo menos sair para fazer as compras”, uma anima a outra.
Elas encontraram um cantinho com sombra e compartilham com o HuffPost o tédio que estão sentindo, nestes tempos em que tanta atenção está sendo voltada às pessoas da terceira idade. “Você não tem medo de ficar na companhia de velhinhas?”, respondem quando pergunto se elas não têm medo de sair para a rua. Uma delas, de 72 anos, se queixa: “Os políticos são imbecis e nos estão metendo medo. Quanto à mídia, nem se fale, vocês não falam de outra coisa, é um absurdo.”
“Me mandaram sair de casa o mínimo possível”, comenta outra. “Ouvi até que vão nos proibir de sair, mas enquanto a polícia não chegar eu não vou dar bola”, diz sua amiga. “Me telefonaram de minha consulta e me disseram para não ir”, responde a primeira. “Li uma frase na internet dizendo que nos estão botando medo para nos vender segurança”, acrescenta a segunda. “É tão absurdo o que estão fazendo…”
E assim, enquanto as idosas compartilham suas impressões, a jovem que as acompanha nos pergunta o que pode fazer: ela precisa cuidar de uma idosa, seus pais estão em outro país e ela não tem com quem deixar seu filho. Ninguém lhe explicou nada.
“Eu não sabia se ia ao salão”
A poucos metros de distância, saindo da quitanda, Encarna carrega duas sacolas de feira até sua casa. Ela não é daquelas que fazem compras compulsivamente: é o que ela compra de hortifrútis frescos todo dia (e pretende continuar comprando). Ela admite sentir um pouco de medo: “Meu filho é deficiente e também frequenta um centro de convivência. Não nos disseram se vão fechar o centro, mas o aconselharam a não ir”, ela explica. Ela própria acaba de ir ao salão e abaixou a voz para dizer que não sabia se devia ir ou não.
“Além disso, tenho duas consultas marcadas com o oftalmologista e não sei se posso ir, porque nem estão atendendo o telefone.” Ela diz que é isso que mais está preocupando as pessoas que a cercam: “O fato de você ter uma operação ou alguma coisa chata para fazer no médico e não poder ir ou de ela ser adiada, depois de você passar meses esperando pela consulta.”
Um pouco mais perto do estádio do Rayo Vallecano, um casal de 80 e 83 anos passeia com sua cachorra. Eles não deixaram de sair para caminhar desde que a crise se intensificou na cidade: “Meu marido sai menos que eu, porque está em situação de risco, mas eu vivo normalmente, encontro minhas amigas e vou para a missa, as coisas que faço todos os dias”.
Seus vizinhos Leonor e Antonio, de 85 e 88 anos respectivamente, descem para a rua para levar o lixo para fora e se preparam para voltar para casa. Eles explicam: “Procuramos não ficar em lugares com muita gente, não andar de ônibus e passar mais tempo em casa, mas ainda saímos para andar um pouco”.
Um dia quase normal no bairro
No dia que o HuffPost Espanha visitou o bairro de Vallecas, seus moradores mal tomavam conhecimento do coronavírus. Diferentemente do centro da cidade, ali os mercadinhos administrados por chineses continuavam abertos, assim como as lojas maiores como El Corte Chino ou Super Asia, em cuja porta os donos colaram um cartaz pedindo desculpas por atender os fregueses de máscara, explicando que é para prevenir a propagação do vírus.
Na Avenida de la Albufera, algumas pessoas chinesas e algumas mais velhas estão de máscara. Os idosos não querem falar, para não se aproximarem demais das outras pessoas, mas muitos também estão voltando para casa depois de passar a manhã fazendo compras, passeando ou tomando uma cerveja com os amigos.
Em um bairro um tanto empobrecido e multicultural como Vallecas, um lugar de tradição operária, é comum ver muitos idosos no meio a jovens carentes e imigrantes. Nessa quarta-feira, a cena era igual: adolescentes, migrantes e avós que fazem parte do milhão de idosos acima de 65 anos que vivem na Comunidade de Madri.
No mercado de Vallecas, o açougueiro comenta que as pessoas “enlouqueceram” na véspera e diz que ele tem visto pessoas mais velhas saindo às ruas, sim. “Hoje em dia eles são os primeiros que chegam. Eles serão os primeiros a morrer, mas morrerão com a despensa cheia”, comenta, brincando.
Emilia é uma dessas mulheres que tem a geladeira cheia. Com 89 anos de idade, ela não vive em Vallecas mas em Usera, bairro com grande população chinesa. O que a preocupa é não poder mais ir ao centro de convivência “para pintar, fazer Tai Chi ou trabalhos manuais”. Também para tomar um café com as amigas depois das aulas que faz. “Temos ficado em casa nestes últimos dias. Estou com a geladeira cheia porque tenho uma moça que me ajuda a fazer as compras. Mas em dias como ontem eu levanto, vou à rua passear um pouco depois do café da manhã e então volto para casa.”
Emilia se diz grata por viver num bairro com parque, porque assim ela pode sair para arejar o espírito. “Me sento nos bancos onde não há mais ninguém. Se vejo minhas amigas, falo para não me beijarem. Quando volto para casa, lavo as mãos”, ela assegura. Ela é uma mulher do bairro, não utiliza muito os transportes públicos devido à dor nas pernas decorrente da artrite e porque caminhar é complicado para ela, com muleta.
Apesar de estar chateada com isso, ela acha correta a medida tomada pela prefeitura de Madri de fechar as portas dos centros de convivência. “Acho uma boa medida de precaução. Tudo que se fizer para evitar a propagação é bom. Na sexta-feira vou viajar com minha filha. Já falei que se ela não quiser que eu vá, não há problema – todos precisamos ser responsáveis”, ela assegura, concluindo: “Foi isso que nos aconteceu e temos que aceitar”.
*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost Espanha e traduzido do espanhol.a
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