As possibilidades de leitura da Aufklärung, como período histórico e postura filosófica
Autoria: Isadora Tabordes
A resposta para a pergunta sobre o que é o esclarecimento foi encontrada na saída do homem da menoridade, no distanciamento da covardia e da preguiça do pensar por si mesmo, das quais o ser humano é culpado. Diante de um possível otimismo no que diz respeito ao progresso humano e ao uso de suas capacidades racionais, os desdobramentos dessa questão, a partir da qual o posicionamento filosófico kantiano instigou Michel Foucault, encontram-se principalmente em um pequeno escrito de Kant para uma revista, fato este enfatizado pelo autor francês devido à noção de público para o qual o texto é dirigido, conceito central aplicado no escrito Was ist Aufklärung? [O que é o esclarecimento?], noção relacionada ao diálogo direto entre o escritor e o leitor entendido como um indivíduo qualquer, parte da realidade.
Um outro ponto interessante a ser lembrado diz respeito a preocupação com a atualidade. A filosofia pertence ao presente, tal como encontra pertencimento no passado e nas questões futuras. É cabível ao filósofo dissertar acerca das perspectivas do futuro da existência humana, sobretudo, se o entendermos como ator e parte de um processo histórico, e até mesmo, pela dificuldade de se pensar um sujeito capaz de sair totalmente de sua própria condição para analisar puramente determinado contexto. Inclusive, seria este um assunto interessante a ser tratado em um outro momento; pensar os limites e as condições de um ser humano investigar sem que o filtro de seu tempo exerça influência em seu pensamento.
Michel Foucault, ao analisar o texto kantiano, identifica uma nova proposta de modernidade, uma busca pela compreensão do homem da atualidade, tornando-se, portanto, nítida a relação do Aufklärung enquanto período histórico e postura filosófica. Ambas possibilidades de concepções estariam imbricadas? O que se entende por Aufklärung?
Tendo a natureza há muito os libertado, os homens continuam presos por grades invisíveis consequentes de suas próprias inclinações, de seus próprios medos, continuam estagnados em uma posição menor sem que tomem a decisão de mudar o rumo de suas mentalidades. Kant define Aufklärung como a saída do homem de sua menoridade, da sua incapacidade de fazer uso de seu próprio entendimento sem a direção de outrem, ou seja, é quando tomamos a decisão de pegar a estrada rumo à autonomia e dispensamos a facilidade de um guia, o que evidentemente é um processo forçoso, árduo, que exige um distanciamento das próprias inclinações à preguiça e à covardia presentes em nós mesmos.
Devido à dimensão do desafio e esforço, não é surpreendente que tenhamos medo de desbravar os horizontes ilimitados de nossas próprias condições. O esclarecimento parte, portanto, de uma decisão de transformação, de um ato de coragem; Sapere aude! Ousa saber!
Havendo um livro que pense por nós, um guru que aponte o caminho a ser trilhado, um médico que nos diga como e quando devemos nos alimentar, por que haveríamos de desperdiçar nossa energia vital com autonomia? Por que haveríamos de libertarmo-nos se é “tão cômodo ser menor”? O ser humano tende a reservar suas energias para um colapso, sem perceber que o verdadeiro colapso é justamente a sua incapacidade de pensar por si mesmo, além da sua incapacidade de compreender a importância disso. É através de um esforço consciente de nossas mentes que podemos buscar a porta que nos conduz à maioridade, porém mesmo nesse caminho estamos em risco da paixão pelo comodismo, se nos distraímos, eis que a preguiça e a covardia abraçam-nos carinhosamente, sem que tomemos a decisão de afastá-la. Trata-se de um esforço constante, mas que reflete em todos os âmbitos da existência, o Aufklärung é uma transformação que atinge a vida política e social do homem.
Na tentativa de evitar obscuridades do pensamento, em erros interpretativos, torna-se necessário ressaltar que ponto central não diz respeito a deixarmos de ler, de buscar um médico etc, mas que não os tornemos guias, que não façamos a substituição de orientação, que não dispensemos nossa razão. Assim também é tratada a questão da obediência, presente na distinção extremamente importante entre o uso privado e o uso público da razão. Alcançar as condições de servimo-nos de nosso próprio entendimento, não significa que devemos deixar de pagar nossos impostos e não mais seguir as recomendações de nosso chefe de trabalho, por exemplo, significa que apesar de obedecer quando é necessário, podemos criticar isso a partir do uso público e livre de nossa razão.
Uma vez que um indivíduo está comprometido com algum cargo determinado na sociedade, para o qual visa um fim específico, deve exercer seu papel e submeter o uso privado de sua razão às regras estabelecidas, fazendo um uso mecanicista, pragmático, no entanto, não é uma obediência cega, lembra-nos Foucault. Um indivíduo instruído o suficiente para pensar criticamente os impostos, por exemplo, pode e deve, a partir do seu uso público da razão, expor suas descontentamentos e críticas, obedecendo agora, à razão universal, mesmo que termine por pagar as taxas julgadas como injustas.
Lamentavelmente, até mesmo Kant reconhece, que muito pequeno é o número daqueles que conseguiram e conseguirão, através de uma transformação de si, possuir um pensamento próprio e alcançar a maioridade, embora relutemos em assumir a tristeza dessa realidade, diversos autores nos alertam, o que serve como motor para que uma vez havendo a possibilidade, possamos fazer uso público de nossa razão para apontar seus escritos como uma direção para um eventual despertar acerca da importância do despertar.
“Milhões estão despertos o suficiente para o trabalho físico; mas apenas um em um milhão está desperto o suficiente para um efetivo esforço intelectual, apenas um em cem milhões, para um vida poética ou sublime. Estar desperto é estar vivo. Ainda não encontrei nenhum homem que estivesse totalmente desperto. Como poderia olhá-lo na face? Temos de aprender a redespertar e nos manter despertos, não por meios mecânicos, mas por uma infinita expectativa da aurora, que não nos abandona nem mesmo em nosso sono mais profundo. Desconheço fato mais estimulante do que a inquestionável capacidade do homem de elevar sua vida por um esforço consciente. Já é uma grande coisa ser capaz de pintar um quadro ou esculpir uma estátua, e assim dar beleza a alguns objetos; mas muito mais glorioso é esculpir e pintar o próprio meio e atmosfera que nosso olhar atravessa, o que podemos fazer moralmente. Afetar a qualidade do dia, tal é a arte suprema. Todo homem tem a tarefa de tornar sua vida, mesmo nos detalhes, digna de ser contemplada estando ele em sua hora mais crítica e elevada. (…)” – Henry David Thoreau em Walden