Uma vovó aposentada de 85 anos enxergou no isolamento social uma oportunidade para realizar seu sonho: aprender a ler e a escrever com seu neto professor.
A aposentada Alcina Bispo morava no interior do Tocantins quando decidiu se mudar para a casa do neto, Ricardo Pereira, 31, em Goiânia (GO), há cerca de um ano.
Com a quarentena, precisou repensar sua rotina, agora exclusiva em casa. Dedicada que só ela, pediu ajuda à Ricardo, que é professor de língua portuguesa, para ser alfabetizada.
Para o professor, o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19 criou a oportunidade perfeita, já que há anos ele também desejava ensiná-la a ler e a escrever.
“Alfabetizar a minha avó já era um sonho antigo, tanto meu quanto dela. Infelizmente, não foi possível antes, mas, com a quarentena, eu tive a oportunidade de colocar esse projeto em prática”, afirmou.
“Acho que é uma forma de retribuir um pouco de tudo o que ela me ensinou” , completou o professor.
A família inteira nasceu e cresceu no Tocantins, mas Ricardo mudou-se para Goiânia na adolescência, aos 16 anos.
Vovó e neto viveram em estados diferentes até o ano passado, quando Alcina se mudou para a capital goiana para cuidar de doenças que sugiram com o avançar da idade.
Ricardo conta que era um desejo antigo seu poder alfabetizar a avó, mas a ideia ficara adormecida por conta da distância. “Há uns 15 dias eu a vi um pouco ociosa e, nesse momento, caiu a ficha. É agora a hora de realizar o sonho”, disse.
O professor de língua portuguesa dava aulas para pessoas que buscam passar em concursos. Logo, para ensinar a vovó ele precisou estudar novamente algumas técnicas de alfabetização.
De acordo com ele, após mais ou menos 10 dias de aula, Alcina já reconhecia facilmente as vogais e já faz associações.
“Tem sido engraçado e é um desafio. Ela teve dificuldade nos primeiros dias, mas tem se saído muito bem”, avaliou o professor.
A Dona Alcina é uma guerreira moldada pela vida: ficou órfã aos 9 anos, casou-se com 15 e criou nada mais, nada menos do que 15 filhos. Dedicou-se integralmente à família e nunca teve a chance de estudar – apesar de sempre querer aprender.
“Eu tenho muita vontade de fazer meu nome, mas nunca tive a oportunidade. Cada tempo é tempo. Estou viva, e Deus vai me ajudar e vai dar tudo certo”, disse.
Com a mais absoluta dedicação, a idosa estuda todos os dias por cerca de 30 minutos com o neto. Depois, estuda as letras para formar novas palavras e treina o reconhecimento delas por meio da repetição.
“Depois, ela fica com as letras impressas. Toda hora vamos relembrando. Às vezes, chego na sala e ela está estudando”, disse Ricardo.
Ricardo diz que ajudar sua vó a ler e a escrever é uma maneira de agradecê-la por tudo que ela fez por ele. Em meio a uma reflexão, ele até escreveu uma cartinha de agradecimento para Dona Alcina…
Ela me ensinou muita coisa do que sei, me ensinou o que significa aceitação, desde o dia em que mamãe, solteira, chegou à nossa casa, comigo nos braços.
Ela me ensinou que plantar e colher são verbos recorrentes na vida, e que o principal não é plantar, mas o modo como se planta.
Ela me ensinou a ler o tempo com a ajuda dos pássaros, me ensinou a diferenciar queijo de requeijão, abacaxi de ananás, e que Maria Isabel é a melhor comida do mundo! Ou seria o picadinho de mandioca? Talvez, o “Mucunzá” com abóbora madura e pimenta?
Ela me ensinou que leite com manga faz mal. (Isso eu descobri com a vida que era mentira! Pelo menos, para a gente, porque, apesar de experimentos científicos, ela ainda jura que é verdade! “Fulana morreu disso!”).
E me ensinou a separar gente boa de gente má. E que não se deve comer carne na Sexta-Feira da Paixão, e que honestidade é uma qualidade indispensável ao homem, diz com retidão, mesmo um pouco corcunda, por causa da idade.
Ela me ensinou que “companheirismo” é um substantivo importantíssimo nas relações, por mais que não fizesse ideia de a que raios de classe aquela palavra linda pertencia. Pertencia a ela! Assim como outras tantas palavras que ela usava para me contar as coisas da vida: sua infância sem os pais, a criação pela madrinha má, o casamento aos 15 anos, os 15 filhos que teve.
Cenas de alegria e de aprendizado e de uma vida amando o meu avô. Com ela, eu aprendi que a morte não põe fim no amor, dá pra ver a saudade escorrendo pelos seus olhos sempre que se lembra dele.
Ela me ensinou tanta coisa, que eu levaria horas para listar tanta vivência. Me ensinou a cozinhar, passar café, agir conforme os princípios éticos.
Ela me ensinou a imaginar! Eu adorava me jogar em seu colo e ficar imaginando como eram os bichos e as lendas que habitavam as florestas que ela frequentava. Confesso que imaginava, pela sua narração, a sucuri um bicho muito mais imponente, como as Anacondas dos filmes. Não era. Também não faz mal. As serpentes e os espíritos das suas histórias eram mais legais. Ela me ensinou a ler o mundo, de uma forma sofrida e encantada.
Acho que chegou a minha vez de ensinar o mesmo a ela, só que agora com letrinhas.
Fonte: G1