Regiões brasileiras chegaram a um cenário tão crítico de calamidade dos sistemas de saúde por causa do coronavírus que a única saída agora seria uma maior restrição da circulação de pessoas e até “lockdowns”, de acordo com especialistas.
“Lockdown” é o termo em inglês para confinamento ou isolamento compulsório, e pode ter diferentes graus de rigor, da restrição maior de transporte público e privado ao bloqueio total de entradas de cidades ou Estados. É diferente da adesão voluntária da população ao isolamento social porque pode restringir a circulação de pessoas através de bloqueios e punições — de multas a detenção —, como ocorreu na Itália e na Espanha, por exemplo.
O objetivo do isolamento das pessoas, voluntário ou compulsório, é reduzir as contaminações pelo coronavírus e ganhar tempo para que os sistemas de saúde possam atender os pacientes mais graves. Se muita gente estiver infectada de uma vez pode não haver leitos para todos — como já acontece em alguns Estados do Brasil que atingiram ocupação máxima de leitos de UTI.
“Temos aumento de casos, aumento de mortes e redução de isolamento. Não vejo outra solução a não ser tomar uma medida muito mais forte, muito mais extrema”, diz Paulo Lotufo, epidemiologista da USP.
O Brasil começou bem com o isolamento social com alguma antecedência, mas cometeu alguns erros ao longo do caminho que colocou o país na rota do “lockdown”. A BBC News Brasil falou com cinco especialistas da área de saúde para entender que erros foram esses e por que o confinamento pode ser a melhor solução para algumas regiões.
1) Adesão irregular ao isolamento social
O primeiro motivo citado por especialistas para uma eventual necessidade de restrição severa de circulação de pessoas ou o confinamento compulsório é que simplesmente muitas pessoas não fizeram o isolamento social proposto até agora ou abandonaram a quarentena no meio do caminho.
“Se formos pensar no país como um todo, o isolamento foi muito irregular. Em alguns lugares, praticamente não existiu”, avalia Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Na visão da epidemiologista Raquel Martins Lana, “o isolamento começou a ser afrouxado no momento mais crucial”. Como o vírus demorou um tempo para chegar ao Brasil, regiões do país até começaram a se preparar com antecedência. “A gente estava indo relativamente bem, com tempo para construir hospitais de campanha, aumentando o número de leitos e ganhando certa vantagem para deixar a transmissão mais devagar”, diz ela.
“A epidemia ficou um pouco mais lenta no Brasil e houve um pequeno retardo no colapso do sistema em alguns lugares. Mas quando a gente ia ver isso, o isolamento foi abandonado em muitos lugares, e rapidamente houve um aumento de casos graves.”
Lana é integrante do Mave, grupo de trabalho de pesquisadores de computação científica da Fiocruz e matemática aplicada da Fundação Getúlio Vargas que vem analisando a situação da disseminação do vírus no Brasil.
“Se tivéssemos continuado com o isolamento como no início, provavelmente não precisaríamos agora de uma medida radical como o isolamento obrigatório. A gente tinha adesão alta. Não era uniforme, não era igual em todos os Estados, mas estava funcionando”, afirma.
2) Anunciar futura flexibilização da quarentena
Para o epidemiologista da USP Paulo Lotufo, gestores que anunciaram a flexibilização da quarentena no futuro cometeram um grande erro. O Estado de São Paulo, por exemplo, comandado por João Doria, acertou em adotar o isolamento social com certa antecedência enquanto simultaneamente aumentava a capacidade do sistema de saúde.
Mas em 20 de abril, Doria anunciou que a quarentena seria flexibilizada, caso alguns critérios fossem cumpridos. A data prevista para essa flexibilização era a de 11 de maio, três semanas depois do anúncio do governador.
Para Lotufo, teria sido um erro aventar essa possibilidade. “A leitura que passou para a população foi que ‘opa, tudo bem, está liberado'”, diz ele. “O que estamos percebendo é que quando você sinaliza com uma data, as pessoas já assumem a postura na hora.”
Não foi só no governo do Estado. Algumas cidades paulistas também quiseram flexibilizar a quarentena ainda antes da data estipulada por Doria, e isso foi comunicado para a população.
Stucchi, da Unicamp, diz que anúncios assim passam a impressão de que está “tudo bem”. “Essas notícias acabam confundindo muito. A leitura das pessoas é: ‘Se ele já está falando que vai flexibilizar no futuro, é porque está tudo bem agora, eu posso abrir minha lojinha aqui, reunir meus amigos’.”
3) Falta de restrição de circulação durante feriados
Outro erro, de acordo com Lotufo, foi não ter havido restrições durante a Semana Santa em São Paulo. No período do feriado, de 5 a 11 de abril, muita gente viajou para o interior do Estado e para o litoral. “Deveria ter havido um bloqueio, ninguém poderia entrar nem sair da cidade. Teve ida e vinda muito grande entre os municípios”, diz ele.
Stucchi menciona que houve três feriados consecutivos no último mês: a Páscoa, Tiradentes (21 de abril) e o 1º de maio. “Deveria ter havido maior bloqueio e restrição em estradas para dificultar a locomoção de pessoas”, opina.
4) Comportamento do presidente minimiza riscos e confunde população
Desde o começo na pandemia no Brasil, Bolsonaro tem abertamente desrespeitado as regras de distanciamento social, incentivando, participando e inclusive causando aglomerações na capital federal.
No dia 15 de março, quando o Ministério da Saúde recomendava que aglomerações fossem evitadas e a Organização Mundial de Saúde (OMS) já recomendava o afastamento social, Bolsonaro celebrou em sua conta do Twitter atos que estavam acontecendo pelo país — depois de negar que ele mesmo os tivesse convocado.
No dia 29 de março, um dia após seu ex-ministro Mandetta defender o isolamento social e recomendar que as pessoas não saíssem às ruas, Bolsonaro deu um passeio por várias partes de Brasília. Entrou em uma farmácia e em uma padaria, causando aglomeração e tirando fotos com apoiadores — entre eles, pessoas com mais de 60 anos, parte do grupo de risco para o coronavírus. Depois disso, em outras duas ocasiões, nos dias 9 e 10 de abril, voltou a sair em passeios por Brasília, causando mais aglomerações e abraçando e dando apertos de mãos em apoiadores.
Bolsonaro também chegou a participar de uma manifestação. No dia 19 de abril, endossou e esteve de corpo presente em um protesto com bandeiras contra a democracia em Brasília. O presidente até discursou na manifestação.
A última de suas aparições claramente violando as recomendações da OMS e de seu próprio Ministério da Saúde foi neste domingo, 3 de maio, quando foi à rampa do Palácio do Planalto falar com apoiadores. Sem máscara, não respeitou o distanciamento social e pegou crianças no colo para tirar fotos.
Além disso tudo, desde o começo da pandemia, o presidente do Brasil vem fazendo uma série de declarações minimizando a doença causada pelo coronavírus e rechaçando medidas para conter sua disseminação pelo Brasil. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, disse ele quando o país ultrapassou a marca de 5 mil mortos na semana passada.
“É um desserviço imenso, e influencia muito a população”, avalia Stucchi. “De um lado, vemos na televisão notícias sobre a pandemia, sobre o coronavírus. De outro, vemos o presidente dando beijinhos, abraços, andando sem máscara e atraindo multidões”, diz ela, citando como contraponto a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arden, e seus pronunciamentos sobre o coronavírus e a importância do distanciamento social.
Para ela, “a postura do presidente tem dificultado o trabalho de todos que tentam mostrar, a área da saúde e da imprensa, qual é o caminho que deu certo nos outros locais e o que é importante para controlar a transmissão”. “Certamente não é um caminho com essa falta de exemplo, essa remada contra a maré que vem sendo feita pelo presidente.”
5) Dissonância entre Bolsonaro, governadores e prefeitos confunde e dificulta diretriz única
À postura inadequada de Bolsonaro frente às recomendações da OMS para o enfrentamento do coronavírus, soma-se a dissonância de discursos entre presidente, governadores e prefeitos.
Enquanto Bolsonaro minimizava a pandemia no Brasil e defendia a continuidade de serviços para evitar danos econômicos, governadores foram os primeiros a adotar medidas de isolamento social nos Estados brasileiros para tentar achatar a curva de infecções no país.
A disputa vem se arrastando desde o início da crise. Na semana passada, Bolsonaro disse que a “fatura” de mortes deveria “ser enviada aos governadores”.
Para Ana Maria Malik, professora da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do centro de gestão em Saúde da instituição, isso é um problema porque mostra que “não há clara governança nacional, na qual as pessoas consigam acreditar” e saber “qual é a diretriz para o país e para cada região”.
“Os discursos não estão afinados, o que causa insegurança na população”, diz ela. “A população acaba achando que pode tomar suas decisões de fazer ou não o isolamento, já que os mandantes não estão de acordo uns com os outros.”
Para Stucchi, a falta de união de diretrizes também afeta municípios e Estados, “o que acaba trazendo muita confusão para a população”. À revelia do governo de São Paulo, por exemplo, Campinas e Ribeirão Preto já anunciaram planos de reabertura do comércio.
6) Troca do ministro da Saúde dificultou adesão da população
No meio da pandemia, no dia 16 de abril, Bolsonaro demitiu seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O Brasil não havia chegado ainda ao pico da epidemia, e vinha numa crescente de contaminações.
Antes da demissão de Mandetta, houve semanas de embates entre Bolsonaro e seu ministro, principalmente porque o presidente discordava de manifestações deste a favor das medidas de isolamento social.
“A troca de gestão no ministério no meio da crise aconteceu quando a gente estava conseguindo maior adesão da população. Perdemos muito tempo com isso”, diz Lana, da Fiocruz. “Isso desestruturou toda a população, que ficou sem saber o que fazer. Desmobilizou a gestão de saúde e consequentemente a população.”
O oncologista Nelson Teich assumiu o ministério da Saúde no lugar de Mandetta, e só deu uma coletiva de imprensa quase uma semana depois de assumir a pasta. Seu antecessor dava entrevistas coletivas diárias para responder a perguntas de jornalistas e informar a população sobre o coronavírus e as medidas de contenção tomadas no país.
7) Notícias falsas e promessas de curas milagrosas que desviam atenção da necessidade de isolamento
Promessas de tratamentos que “curariam” a covid-19, doença causada pelo coronavírus, também podem ter causado a impressão de que a quarentena não era necessária.
A hidroxicloroquina, por exemplo, foi propagandeada por Bolsonaro como solução do Brasil para a doença. O presidente recomendou o uso do medicamento — que ainda não tem comprovação científica de sua eficácia contra a covid-19 — em suas redes sociais e até em um pronunciamento em rede nacional de rádio e TV.
“O Brasil e os Estados Unidos fizeram o uso inadequado de promessas de tratamentos curativos e milagrosos. Isso faz com que possivelmente muita gente comece a se automedicar e demorar mais para ir ao hospital”, diz Stucchi. “O uso político da cloroquina foi um desserviço e pode ter tido reflexo negativo para o isolamento. As pessoas pensam que tem uma cura, um remédio baratinho que qualquer um pode comprar, e que vai ficar tudo bem.”
Ela também destaca o papel que possivelmente notícias falsas podem ter exercido na quarentena.
De fato, houve circulação relevante de notícias falsas minimizando a gravidade da covid-19 no Brasil. Uma pesquisa feita em parceria pelos projetos Eleições Sem Fake, do Departamento de Ciência da Computação, da UFMG, e Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP, analisou 2.108 áudios que circularam entre os dias 24 e 28 de março, em 522 grupos públicos de WhatsApp, com a participação de mais de 18 mil usuários ativos.
O estudo concluiu que entre os 20 áudios com maior circulação, cinco negavam a gravidade da doença causada pelo coronavírus. Quatro desses cinco áudios estavam entre os dez mais compartilhados por usuários, e continham supostos depoimentos de profissionais de saúde testemunhando UTIs vazias ou funerárias sem corpos, entre outros.
Lockdown à brasileira
A epidemia vem evoluindo de diferentes formas em diferentes regiões do Brasil. Por isso, eventuais confinamentos compulsórios devem ser considerados localmente, e não nacionalmente, dizem os especialistas.
“Cada lugar tem uma história, um número maior ou menor de casos. As epidemias são locais”, explica Aluisio Barros, professor titular do programa de pós-graduação de epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
Em algumas regiões do Brasil, o lockdown já é cogitado ou já foi aplicado. Em São Luís, capital do Maranhão, foi a Justiça que determinou o bloqueio total da capital do Estado e mais três municípios da região metropolitana por ao menos dez dias. A capital atingiu ocupação máxima dos leitos de UTI.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), disse estar considerando um “lockdown” em algumas cidades do Estado.
No Rio de Janeiro, apesar do secretário estadual de Saúde, Edmar Santos, defender regras mais rígidas para o isolamento social e citar o lockdown como uma alternativa, o governador Wilson Witzel disse, na noite de segunda (4) no programa Roda Viva, da TV Cultura, que um eventual lockdown do Estado teria que partir do Poder Judiciário, como ocorreu no Maranhão. Também disse que cogita punições para quem descumprir o isolamento social no Estado.
A gestão Bruno Covas (PSDB) começou a bloquear avenidas importantes da capital paulista na segunda (4) para reduzir a circulação de pessoas.
Para Stucchi, um eventual lockdown em regiões do país deveria ser feito “à brasileira”, e não necessariamente copiando o isolamento compulsório feito em outros países. Ela diz que não faria sentido aplicar multas para os brasileiros, por exemplo, já que seria “mais uma conta que o brasileiro vai ficar devendo” por conta da situação econômica da maioria da população.
Ela defende, sim, restrição do deslocamento das pessoas de forma ostensiva, bloqueando a mobilidade urbana. “Se não o descontrole e a perda de vidas vai ser maior ainda.”
Para Lana, em regiões mais críticas, o lockdown é o recomendável agora porque leva tempo para mobilizar todo mundo de novo para seguir as regras de isolamento social voluntário. “Até conseguir fazer todo o trabalho de mobilização, já se perdeu muito tempo. Não temos mais tempo hábil em alguns Estados onde a crise está bem séria.”
“Qualquer descuido pode levar ao descontrole”, diz Barros. “Tem gente achando que epidemia é igual torneira, que a gente vai controlando. Eu acho que epidemia é mais como fogo no mato, quando chega num determinado ponto, ninguém segura mais.”
Fonte: BBC