Os biólogos tentam entender esse “paradoxo” há séculos: por que a reprodução assexuada, muito mais vantajosa, é bem menos comum do que a reprodução sexuada? Onde foi que a evolução errou?
Sexo versus clones
Entre os organismos eucariotas, a reprodução assexuada é exceção. Menos de 1% das plantas se reproduz assexuadamente com frequência, por exemplo. Entre os animais, uma a cada mil espécies conhecidas é exclusivamente assexual.
Mas por que sexo?
As desvantagens de depender do sexo para a reprodução são muitas: precisa de dois indivíduos, cada um só passa uma parte de seu genoma, e a proximidade com outro indivíduo pode torná-lo vulnerável a danos físicos e infecções.
Nada disso ocorre na reprodução assexuada: você faz tudo sozinho, passa todos os seus genes, e puff, tem um clone seu por aí.
A resposta padrão: diversidade
A primeira resposta para esse dilema veio em 1932, quando o trabalho do geneticista Hermann Muller em mutações induzidas por radiação o levou a concluir que a “sexualidade, através da recombinação, é uma forma de tirar o melhor proveito das possibilidades de mutação genética”.
Ele não foi o primeiro cientista a propor essa ideia, mas foi neste momento que a teoria ganhou relevância.
Em outras palavras, ficou decidido que o propósito do sexo era aumentar a diversidade genética. Tal diversidade poderia, por sua vez, tornar as próximas gerações mais fortes, mais rápidas, mais resistentes a parasitas, enfim, mais adaptáveis no geral.
Só que…
Existem furos nesta hipótese, no entanto. Por exemplo, a justificativa da diversidade não explica como ou por que organismos unicelulares desenvolveram um componente essencial do sexo: a meiose, o processo de divisão celular, ou seja, de reduzir pela metade o genoma, o que permite a produção de óvulos e espermatozoides.
Além disso, as teorias do sexo costumam focar exclusivamente nas vantagens à prole das espécies, frequentemente esquecendo os potenciais para benefícios diretos ao indivíduo, conforme explica Caitlin McDonough, que estuda a evolução de sistemas reprodutivos na Universidade de Syracuse (Nova York, EUA).
Nos últimos anos, McDonough e outros pesquisadores vêm lançando um novo olhar ao sexo, a fim de descobrir como esse meio de reprodução, bem como os processos celulares e fisiológicos que o acompanham, afetam indivíduos.
Os resultados recentes sugerem que o problema em encontrar uma explicação única para a evolução do sexo é porque não há uma – na verdade, existem tantos benefícios envolvidos com o sexo que os indivíduos podem praticá-lo para aproveitar qualquer um deles.
Um organismo, dois métodos de reprodução, várias vantagens
As algas verdes do gênero Volvox se reproduzem melhor assexuadamente (ou seja, o melhor jeito de ter prole é fazendo cópias de si), mas fazem sexo quando querem – normalmente, para melhorar suas chances individuais de sobrevivência.
Elas foram estudadas pela bióloga Aurora Nedelcu, da Universidade de Nova Brunswick, no Canadá. Na maior parte do tempo, essas algas vivem com o que seria considerado metade de um genoma para os padrões humanos: são haploides, o que significa que possuem apenas uma cópia de cada cromossomo.
Quando passam pelo processo de mitose, fazem uma cópia de cada um de seus cromossomos, depois essas cópias se alinham e são separadas em duas novas células-filhas, idênticas às de sua mãe.
Quando o ambiente fica “difícil” para as algas, com falta de nitrogênio ou quente demais, por exemplo, elas se reproduzem sexuadamente. As haploides se fundem para criar células com duas cópias de cada cromossomo, tornando-se diploides.
Se o estresse fisiológico vai embora, no entanto, as algas param de fazer sexo. Isso levou Nedelcu e seus colegas a concluírem que o propósito do sexo nestes seres não é a reprodução, mas sim melhorar suas chances de sobrevivência lidando melhor com estresse no ambiente.
Como o sexo ajuda as algas a lidarem com danos ao organismo
Os pesquisadores determinaram que o processo de meiose oferece oportunidades únicas de aprimoramento genômico que vão além da diversidade.
Como todos os organismos multicelulares, essas algas têm maneiras de “consertar” pequenos erros em seu DNA. Se o dano for excessivo, no entanto, esses mecanismos não funcionam muito bem. Ter uma segunda cópia dessa cadeia de DNA para usar como modelo para os reparos pode ser um salva-vidas – e é aí que entra o sexo.
Em uma célula haploide, geralmente não há maneira fácil de “copiar e colar” seções para curar uma região ferida do DNA, porque apenas um cromossomo está presente. A exceção ocorre durante a meiose, quando pares de cromossomos recém-formados se alinham para formar novas células diploides. Esta é uma oportunidade para o dano no DNA ser reparado.
Em outras palavras, durante a meiose, os cromossomos de cada alga haploide se alinham e podem trocar seções entre si, um fenômeno conhecido como recombinação. Essa etapa, além de aumentar a diversidade genética, também dá aos cromossomos a capacidade de copiar e colar seções do outro genoma haploide para reparar qualquer dano que possa ter acontecido por conta própria.
De acordo com Nedelcu, o fato dessas algas pertencerem a uma das linhagens mais antigas de eucariotos na Terra pode sugerir que “o papel ancestral do sexo não era a reprodução”, mas sim “um meio de responder adaptativamente ao estresse”.
Vale salientar, no entanto, que isso não significa que o estresse incentive o sexo entre seres humanos. A pesquisa não leva a essa conclusão, somente aponta uma das vias pelas quais o sexo pode ter evoluído – embora seja um argumento interessante de ser pesquisado mais a fundo.
Outras evidências
Segundo o biólogo evolucionário Francesco Catania, da Universidade de Münster, na Alemanha, a hipótese de que o sexo evoluiu para ajudar os organismos a lidar com o estresse não é nova e já existe desde a década de 1980. Ela foi negligenciada até hoje provavelmente por viés dos cientistas na forma como pensam o sexo.
O próprio Catania notou um exemplo desta função estudando protozoários chamados paramécias. Trata-se de organismos unicelulares ciliados que nadam em água doce.
As paramécias também se reproduzem sexualmente quando estressadas. Curiosamente, no entanto, quando fazem sexo, costumam fazer consigo mesmas. Ou pelo menos existem evidências anedóticas que sugerem que a autofertilização é comum nestes protozoários, que têm pouca diversidade genética.
Catania decidiu estudar esses protozoários mais a fundo. Ele descobriu que as paramécias pareciam se beneficiar direta e individualmente do sexo. Aquelas que se autofertilizavam sobreviviam melhor a condições estressantes. Só de se tornarem capazes de fazer sexo, inclusive, já pareciam mais “fortes”.
Isso levou o biólogo a concluir que ativar o processo necessário para o sexo ajuda as paramécias a lidarem com estresse. Em outras palavras, sexo não é um processo apenas genético, mas celular; ele envolve ativar vários genes que têm funções celulares. O mero ato de se preparar para a fusão de genomas – mesmo que esse evento não ocorra – simultaneamente prepara o protozoário para responder melhor a eventos estressantes.
E os animais?
Algas e paramécias não são animais, é claro, de forma que suas experiências com o sexo podem não se traduzir nos mesmos benefícios para outras espécies. Mas isso não é impossível. Pesquisas têm descoberto benefícios indiretos do sexo que vão além da meiose.
Por exemplo, um estudo com moscas desafiou a noção de que o sexo é ineficiente quando comparado com a reprodução assexuada na natureza.
Pesquisas em laboratório determinaram que o sexo tem um custo energético alto aos indivíduos envolvidos. Produzir óvulos ou esperma, encontrar um parceiro, o ato de acasalar – tudo isso gasta energia e recursos. Mas esses resultados podem não espelhar as vantagens reais do ato vistas na natureza, porque as condições são muito diferentes.
Teri Markow, professora de biologia celular e do desenvolvimento na Universidade da Califórnia em San Diego (EUA) e seus colegas estudaram moscas-das-frutas na natureza e descobriram que o custo maior é o da virgindade. Fêmeas que fazem sexo vivem mais tempo do que as que não fazem. Isso sugere que há benefícios individuais em fazer sexo, talvez de receber a ejaculação de um macho.
Amy Worthington, que estuda fisiologia reprodutiva e ecologia comportamental na Universidade de Creighton (EUA), viu algo semelhante em grilos. Seria de se esperar que uma fêmea ficasse mais vulnerável a infecções após o acasalamento, por direcionar a maior parte de sua energia para a produção de ovos, mas Worthington descobriu que ela na verdade se torna mais resistente, com respostas imunológicas mais fortes em relação às fêmeas virgens.
Uma das hipóteses é de que compostos similares a hormônios, chamados prostaglandinas, importantes para o desenvolvimento de ovos, também ajudam a regular a resposta imune. Como está presente em fluidos seminais, pode ser que as fêmeas utilizem a prostaglandina que recebem dos machos para aumentar tanto seu sucesso reprodutivo quanto suas chances de sobrevivência.
Dito isto, a prostaglandina não é exclusiva aos grilos, nem mesmo aos insetos. É encontrada em vários animais, de forma que receber ejaculação pode impulsionar o sistema imunológico de fêmeas em insetos, mamíferos ou lagartos, embora isso não esteja comprovado ainda.
E machos não ficam de fora das vantagens do sexo. Um estudo feito pela professora de psiquiatria e neurociência da Universidade Estadual de Ohio (EUA) Leah Pyter e seus colegas mostrou que ratos machos ganham um impulso imunológico em seus cérebros depois de fazer sexo, o que pode significar melhor proteção contra infecções. O sexo também pode alterar o desempenho de seus cérebros.
Outras pesquisas também indicaram que os ratos têm melhor desempenho em certos testes cognitivos após o acasalamento e que o acasalamento regular pode retardar o declínio da função cerebral associado com o envelhecimento nos roedores.
Precisamos de mais pesquisas
Quanto mais estudos são conduzidos sobre o papel do sexo em diferentes organismos, mais os cientistas vão perdendo seus preconceitos sobre o ato.
Muitas das pesquisas feitas até agora não consideraram diversos aspectos e possíveis vantagens do sexo por vieses. Até mesmo os resultados de estudos – como considerações sobre comportamentos homossexuais em animais – foram muito influenciados pela maneira como seres humanos concebem o sexo.
Isso está mudando aos poucos. Os cientistas estão descobrindo que o sexo pode ter inúmeros efeitos positivos, sendo que qualquer um deles pode moldar sutilmente como uma espécie o faz.
Conforme explica McDonough, faz sentido que a evolução do sexo seja guiada pelo menos um pouco por essas vantagens. “Ter filhos com diversidade genética não é incompatível com o benefício direto de passar por esse processo sexual”, disse.
A difusão do sexo faria muito sentido se o ato melhorasse a reprodução tanto direta quanto indiretamente, por exemplo, aumentando a longevidade. É como diz o bordão, só vejo vantagens. [QuantaMagazine]