A obsolescência programada diz respeito a uma estratégia de empresas que programam o tempo de vida útil de seus produtos para que durem menos do que a tecnologia permite. Desse modo, eles se tornam ultrapassados em pouco tempo, forçando, “motivando” o consumidor a comprar um novo modelo. Os casos mais frequentes ocorrem com eletrônicos, eletrodomésticos e automóveis. É algo relativamente novo: até a década de 20, as empresas desenhavam seus produtos para que durassem o máximo possível. A crise econômica de 1929 e a explosão do consumo em massa nos anos 50 mudaram a mentalidade e consagraram essa tática.
Meias que se esgarçam no primeiro uso, lâmpadas com vida útil de apenas 1.000 horas e máquinas de lavar roupa que funcionam pouco mais de cinco anos. A obsolescência programada afeta produtos de múltiplos setores, entre os quais estão os têxteis, os eletrodomésticos e, também, os smartphones, que em muitos casos ficam mais lentos e começam a falhar dois anos depois de comprados.
“No momento, absolutamente todos os fabricantes de telefones celulares adotam essa prática. Quando o celular fica mais lento ou certos aplicativos não funcionam, o usuário já começa a pensar que é normal”, afirma Benito Muros, presidente da Fundação Energia e Inovação Sustentável Sem Obsolescência Programada (Feniss). Atualmente, a vida útil de um telefone, observa ele, é de dois anos. Depois disso, é comum que eles comecem a dar problemas e Muros explica que o reparo pode custar até 40% do que se gastaria na compra de um novo. “Se a obsolescência programada não existisse, um telefone celular teria uma vida útil de 12 a 15 anos”, diz.
A Autoridade Garantidora da Concorrência e do Mercado da Itália (AGCM, na sigla em italiano) impôs há duas semanas uma multa de cinco milhões de euros (222 milhões de reais) à Samsung e outra de dez milhões à Apple por forçarem os clientes a realizar atualizações de software que tornam os telefones celulares mais lentos. Ambas as empresas foram acusadas pela AGCM de adotar “práticas comerciais desleais” que causaram “avarias graves [nos dispositivos] e reduziram significativamente seu funcionamento, acelerando assim a sua substituição por produtos mais novos”.
Essas multas representam “um começo para falar sobre obsolescência programada”, explica Enrique Martínez Pretel, membro do Conselho Geral de Associações de Engenharia de Informática da Espanha e CEO da empresa de especialistas em informática Evidentics. Mas esta soma “não é nada para essas empresas”: “A Apple ganhou 16,04 bilhões de euros (70 bilhões de reais) somente no quarto trimestre de 2014, o ano em que saiu o iPhone 6, que é o dispositivo sobre o qual se impôs a multa”.
Falta de legislação na Espanha
Na Espanha, o Decreto Real 110/2015, de 20 de fevereiro, relativo aos resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos, inclui entre as obrigações dos fabricantes que estes dispositivos sejam projetados e produzidos de modo que sua vida útil seja prolongada o máximo possível. A Comissão Europeia propõe que em 2020 a informação de durabilidade seja obrigatória para os fabricantes, de acordo com Martínez Pretel.
Enquanto em países como a Itália e a França já são promulgadas leis para a proibição total destas práticas, na Espanha não há nenhuma legislação que penalize a obsolescência programada. Em 2016, o Partido Socialista propôs em seu programa eleitoral “proibir e penalizar de forma estrita as práticas de obsolescência tecnológica forçada dos produtos por parte das empresas”. A Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade, em abril de 2017, uma proposta de lei do Grupo Parlamentar Socialista que instava o Governo do Partido Popular a proibir a obsolescência programada.
O Ministério para a Transição Ecológica explicou a El País que para o Governo é essencial implementar ações que sejam promovidas e aplicadas em toda a União Europeia. A Comissão Europeia apresentou em dezembro de 2015 o Plano de Ação para uma economia circular na Europa, que visa analisar as diferentes fases do ciclo de vida dos produtos. Fontes do ministério afirmam que nesse plano “estava previsto que em 2018 se avaliasse na comunidade europeia a possibilidade de elaborar um programa independente de testes sobre a obsolescência programada”. “Teremos que esperar os trabalhos da Comissão Europeia sobre esta questão”, argumentam.
Organizações como a Feniss e a Amigos da Terra tentam conscientizar os políticos sobre a importância de acabar com esse vácuo legal. Esta última iniciou uma campanha em 2017 para pedir ao Ministério das Finanças uma redução do IVA sobre os serviços de reparação e de artigos de segunda mão e de aluguel –dos atuais 21% para 10%. “Temos quase 5 mil assinaturas e nos reuniremos em breve com os ministérios para tentar viabilizar esta demanda”, diz Alodia Pérez, responsável pelos Recursos Naturais e Resíduos de Amigos da Terra.
Pérez diz que as pessoas trocam de celular em média uma vez por ano e que os primeiros telefones celulares tiveram uma vida útil de até seis anos. “Vivemos na era da obsolescência programada. Não só em celulares, mas também em móveis, calçados e eletrodomésticos. As máquinas de lavar roupa que nossos pais tinham duravam 20 ou 30 anos e agora duram pouco mais de sete”, afirma. Ela diz que essa é uma estratégia de mercado muito consolidada para poder continuar vendendo.
O Ministério da Transição Ecológica expôs a este jornal sua preocupação com o efeito direto dessas práticas “no aumento do volume de resíduos gerados e no aumento no ritmo da produção desses resíduos”. O presidente da Feniss explica que “todos os anos geramos 30 bilhões de toneladas de lixo eletrônico”. Em 2025, serão 53,9 milhões de toneladas de resíduos de produtos eletrônicos, segundo o Escritório Internacional de Reciclagem. “Não podemos continuar consumindo como fazemos porque daqui a 20 anos não haverá matérias-primas e vamos nos afogar em nosso próprio lixo”, conclui Muros.
APPLE E SAMSUNG NEGAM ESSAS PRÁTICAS
A Apple foi multada há duas semanas pela Autoridade Garantidora da Concorrência e do Mercado da Itália (AGCM) porque não informou os usuários do iPhone 6 que a atualização iOS 10 exigia um gasto maior de energia e poderia causar “paradas repentinas”, de acordo com esse órgão. Além disso, a Apple levou uma multa maior do que a Samsung porque não informou corretamente os usuários sobre a vida útil das baterias de lítio de seu telefone e alguns fatores que contribuem para a sua deterioração.
Este jornal entrou em contato com a empresa, que não divulgou uma avaliação oficial da multa imposta pela Itália, mas afirmou que sua posição em relação ao desempenho das baterias do iPhone é a mesma divulgada em um comunicado em 28 de dezembro de 2017. A Apple se desculpou depois que o Geekbench, um blog que mede as taxas de desempenho de telefones celulares, descobriu um dado incomum: o desempenho do iPhone caía, sem causa aparente, após um ou dois anos de uso. “Nunca fizemos nada que intencionalmente encurtasse a vida de um produto da Apple”, disse a empresa. Mas, para responder às queixas de clientes, anunciou a redução mundial até dezembro de 2018 do preço de substituição da bateria fora da garantia, de 89 euros para 29 euros (de 380 reais para 125 reais), para todos os modelos do iPhone 6 ou um modelo posterior.
A Samsung, de acordo com a AGCM, insistiu em que os usuários do Galaxy Note 4 instalassem em seus telefones celulares o Android 6.0 Marshmallow. Mas não avisou que essa atualização poderia causar falhas no telefone que teriam um alto custo de reparo porque a maioria dos celulares já estava fora da garantia. A empresa se mostrou “decepcionada” com a decisão do órgão e negou ter lançado qualquer atualização de software que reduzisse o desempenho do Galaxy Note 4. “Vamos tomar as medidas legais necessárias para recorrer da decisão da Autoridade da Concorrência italiana”, afirmou a Samsung.
Fonte: El País