Já faz algum tempo que assisti a uma palestra digital, na qual a palestrante, uma psicóloga que integra ensinamentos da psicologia clássica e práticas e terapias orientais, contou uma história de um de seus pacientes. Era um executivo ou empresário bastante focado no trabalho que há alguns anos (na época estava em terapia com ela) perdeu um voo que o levaria a algumas reuniões e eventos importantes. Foi um dia que começou com o pé esquerdo para ele; tudo deu errado. Amaldiçoou a namorada que quis discutir a relação logo cedo, o taxista que demorou uma eternidade para chegar, o trânsito que não deu trégua e mais um monte de detalhes, que não consigo mais lembrar de toda a história. Mas o fato é que o sujeito ficou absolutamente enraivecido com tudo e com todos durante o dia inteiro até o momento em que soube pela TV que se tivesse embarcado, muito provavelmente teria sido a 200º pessoa a morrer no voo de volta, naquele fatídico acidente da TAM em que o avião não conseguiu frear na pista úmida de Congonhas e acabou atravessando uma avenida, colidindo com o prédio vizinho e matando 199 pessoas. Apesar de verídico, ela contou esse episódio como uma alegoria para nos fazer refletir sobre um conceito místico de como pequenos incômodos do dia-a-dia, frustrações, chateações, desvios de rota podem estar, na verdade, nos protegendo de algo ou nos ajudando na construção de um destino maior; e que na grande maioria das vezes não conseguimos enxergá-los dessa maneira.
Semana passada estive em Fortaleza, no parque aquático Beach Park e por pouco não gabaritamos o parque. Fomos em quase todas as atrações e na minha preferida, fui pelo menos umas dez vezes: com meu marido, meu filho, minha irmã, meu cunhado, meus sobrinhos, meus amigos. Ela ficava exatamente ao lado de uma atração nova, que já estava pronta e seria inaugurada em um par de dias. Em 9 das 10 vezes que me aventurei a ir, desci gargalhando alto, como há muito não fazia, tamanha a diversão. E em 10 das 10 vezes que subi os vários lances de escada (e avistei bem de perto o tobogã ainda maior prestes a ser lançado), fiz algum comentário frustrado sobre o azar de termos perdido aquele brinquedo novo por tão pouco tempo.
Já em São Paulo, soube ontem que um turista morreu, e outros ficaram feridos, ao caírem da atração recém-lançada, o “Vainkará”. Lemos quase que diariamente sobre acidentes e tragédias impensáveis, e acho que já criamos uma certa couraça para não sairmos do nosso prumo (não tenho o menor orgulho disso, mas acho que é uma proteção quase que inevitável para conseguirmos viver e honrar a vida). Mas parece que quando uma fatalidade acontece mais “perto”, seja em um local familiar ou numa situação conhecida, sentimos mais, talvez porque consigamos imaginar, de forma mais concreta e direta, aquilo podendo acontecer com qualquer um, inclusive com os que mais amamos. Ou então porque tenhamos que enfrentar (mais uma vez e para sempre) difíceis perguntas existenciais: será que existe um destino, um plano maior para cada um de nós? Ou será tudo uma grande aleatoriedade? Essas perguntas costumam habitar em algum recôndito da gente, independente de nossas crenças ou religiosidade. Elas ficam ali silenciadas, mas reverberam toda vez que somos confrontados com uma fatalidade.
Pouco a pouco, deixo de tentar buscar respostas. Vou questionando menos, e me permitindo sentir mais. Sinto compaixão pela família e pelos amigos desse homem que o perderam de forma tão brusca e repentina. Sinto empatia pelos funcionários do parque, que nos pareceram extremamente corteses, profissionais e preocupados com a segurança (comentamos isso ainda nessa semana com amigos que estiveram lá conosco). Sinto medo ao pensar na fragilidade da vida. Mas sobretudo, sinto tristeza pelo Ricardo (este era seu nome) que perdeu sua vida justamente em um momento de alegria crua e extravasada. A morte, às vezes, não tem explicação, e somos apenas e tão somente, intimados a encarar essa dura verdade.
Por Shelly Zaclis Bronstein – Autoterapia