Durante muito tempo, achei que para escrever um texto não-jornalístico seria necessário o sentimento à flor da pele, pois as linhas nada mais eram do que um transbordamento do autor. Precisava haver uma angústia, um encantamento, um arrebatamento, um medo, um nervo escancarado, alguma emoção muito evidente e palpável. Sempre cultivei a paz e a tranquilidade, mas achava que este estado de espírito não ajudaria em nada em meus distantes devaneios literários. Eu acreditava na equação: sossego = folha em branco. Assim, a escrita era um exercício passivo. Quando alguma sensação muito aguda batia em minha porta, eu corria para o teclado para despejá-la no papel, na tentativa de apreender o momento ou elaborar melhor o que estava sentindo. Não é à toa que levei quarenta anos (ou pelo menos metade disto) para juntar quarenta textos!
Outro dia revi o documentário sobre Vinícius de Moraes e no filme fica nítido que a paixão era seu grande combustível (casou-se sete vezes para manter essa chama acessa!). Inspirava-se não apenas na intensidade de suas paixões, mas também na vastidão de ânimos que acompanhavam o início e término delas. Aliás, foi ele mesmo quem disse, em uma de suas brilhantes letras de música, que é preciso um bocado de tristeza para fazer um belo samba. Mas, deixando Vinícius em paz na sua imortalidade e voltando a nós, reles mortais, a realidade é que entre picos e vales, a vida é uma grande aventura habitada de rotina. Muita rotina. É a consulta ao médico, é o ortodontista das crianças, a preguiça da ginástica, o trânsito caótico, a lição de casa, o imposto de renda, o boiler quebrado e o consequente chuveiro frio. A vida não é aguda, a vida é crônica. Adoraria poder escrever sempre com os olhos marejados e o coração saindo pela boca, mas o fato é que se quero exercitar o músculo da escrita, como venho me propondo de uns tempos para cá, vou ter que encontrar estímulo também entre uma ida ao supermercado, o pagamento do boleto e a bronca nas crianças.
Confesso que não tem sido um exercício fácil ou automático, mas vem me ajudando a expandir a consciência de que o cotidiano pode ser realmente uma fonte inesgotável de inspiração. Não apenas para a escrita, mas também para tentar viver a vida de forma um pouco mais inspirada. Em um excelente curso que fiz recentemente na The School of Life, Ana Holanda, editora da revista Vida Simples, ensina que as histórias que querem ser contadas não estão necessariamente no extraordinário, mas também – e principalmente – no ordinário. Ela nos guia em uma jornada no sentido de apurar o olhar para enxergar além; mergulhar nas várias e várias camadas por trás das coisas mais prosaicas. As camadas que existem por trás de uma consulta médica, do imposto de renda, de um boiler quebrado. Ontem, abri o notebook, e conseguia enxergar apenas uma tela em branco refletindo minha absoluta falta de inspiração. Hoje, a tela em branco ainda persiste, mas pelo menos consegui ir um pouquinho além, e isto, por si só já tem sido gratificante.
Por Shelly Zaclis Bronstein – Autoterapia