Durante boa parte da minha infância, passávamos todos os domingos, religiosamente, no sítio dos meus avós paternos, em Itapecerica da Serra – o Sítio Waldinha (nome carinhosamente formado pela junção de partes dos nomes Waldemar e Idinha). Algumas das minhas lembranças mais singelas dessa época têm o sítio como pano de fundo, onde estávamos sempre rodeados de pais, avós, tios, primos e amigos. Chegávamos de manhã e íamos embora apenas ao cair da tarde. Os adultos logo se acomodavam em umas espreguiçadeiras esquisitas na frente da casa principal, batendo papo entre uma caipirinha e outra, e pausas para partidas de tênis, futebol, caminhadas. Nós – as crianças – revirávamos aquele sítio do avesso, emendando uma brincadeira na outra, com um breve intervalo para o almoço. Ainda posso sentir o aroma do frango assado interrompendo a brincadeira. Pegávamos uma coxa enrolada no guardanapo e saíamos comendo com a mão para não tomar muito tempo do que realmente interessava.
Foram muitos e muitos os passatempos domingueiros que inventamos, principalmente na época pré-piscina (ela foi construída anos depois de quando passamos a frequentar o sítio), e os aprendizados e as vivências dessa época ficaram incrustrados no meu DNA. Uma das mais icônicas – que até hoje relembramos quando estamos entre primos – foi uma brincadeira batizada na época de “Corajoso”. Nela, cada um propunha uma aventura estapafúrdia e todos os outros tinham que imitar, pois a brincadeira só seguia quando o grupo inteiro demonstrasse sua coragem. Quando lembro o que aprontávamos, admiro a serenidade dos adultos daquela época, com suas taças na mão do outro lado do sítio, sem a mais remota ideia do que se passava. Hoje, com filhos pequenos, fico impressionada como nunca saímos de lá com um braço quebrado ou de ambulância. Lembro de uma vez em que todos – do maior ao menorzinho – pulamos da janela da casa de hóspedes, que apesar de térrea, era construída em um declive bastante acentuado e tinha alguns bons metros até o chão (na minha perspectiva de criança, parecia o Terraço Itália). Se fecho os olhos, posso sentir o frio na barriga e depois o orgulho de ter cumprido a tarefa, ao lado dos primos valentes já embaixo, no gramado. Naqueles tempos, corajoso era quem não tinha medo.
Esta lembrança me veio hoje de forma inusitada durante uma conversa com uma amiga do trabalho. Nos encontramos na copa para um café (e para descongelar um pouco daquele ar condicionado a pino), e ela me contou, assim sem rodeios ou delongas, sobre importantes decisões que havia tomado. Não eram decisões triviais, eram daquelas existenciais, que alteram um pouco o rumo das coisas. Sim, ela tinha seus receios, mas estava decidida. “Está fácil para o analista! Já cheguei na terapia com a decisão mais do que tomada. Ele só precisa me ajudar com o que vem depois”. Acho que foi Mandela que disse que a coragem não é a ausência de medo, mas sim a capacidade de avançar apesar dele. Meus olhos marejaram (e tive que me segurar para não chorar baldes) e depois entendi que a emoção veio de uma admiração profunda por estes pequenos grandes atos de coragem. Um tipo de coragem diferente daquele que eu conhecia quando era pequena. Não a bravura, a valentia, o heroísmo, mas sim aquela atitude de escancarar fraquezas e de expor sua vulnerabilidade, de acolher seus próprios medos, mostrar-se por dentro e de ouvir a voz do seu coração. Uma vez li que a palavra coragem vem do latim (cor + actium) e significa exatamente isto: ação que vem do coração. A racionalização, o “por quê” e o “como” podem vir depois, e o terapeuta está aqui exatamente para isto! Fiquei emocionada naquele café, de frente a essa amiga tão corajosa. Quando era pequena, não imaginava a coragem que se faz necessária para decidir não pular de uma janela, quando todos estão do lado de baixo gritando para você fazê-lo.
Por Shelly Zaclis Bronstein – Autoterapia