Estou fazendo um curso e apesar de não ser sobre um tema relacionado, ganhamos caderninhos de anotações que traziam no verso de capa a biografia resumida de algum filósofo importante. O meu falava de um tal Kierkegaard, um filósofo dinamarquês que viveu entre 1813 e 1855, e sobre o qual nunca tinha ouvido falar (trocaria todas as minhas aulas de física e química na escola por aulas de filosofia!). Seu trabalho explorou as emoções e os sentimentos dos indivíduos diante das grandes escolhas da vida. Muito do seu pensamento vinha de suas próprias questões individuais e de sua personalidade extremamente indecisa. No campo profissional, tinha dúvidas sobre qual caminho seguir (quem nunca?!). No campo pessoal, queria se casar e permanecer solteiro ao mesmo tempo (hiprocrisias à parte, se este conflito não fosse tão demasiadamente humano, a traição não seria uma realidade tão antiga e tão comum). Ele colocou da seguinte forma: “Queremos ‘ambos / e’ enquanto a vida nos faz escolher ‘qual / ou’. E então temos que dar um salto no escuro. Temos que escolher uma vida em particular, mas sempre há outras que poderíamos ter vivido”. Entendo suas inquietudes, pois realmente não somos seres binários e podemos nos angustiar em determinadas bifurcações. Mas fiquei pensando: será que se Kierkegaard fosse nosso contemporâneo, teria estas mesmas inquietações? Ou será que as liberdades dos tempos modernos tratariam de aliviar um pouco o peso de tais decisões?
As grandes escolhas existenciais já não são mais necessariamente excludentes, como um dia foram. As possibilidades estão bem mais fluidas, as pessoas estão cada vez mais permitindo-se criar suas próprias cartilhas e inventar suas próprias fórmulas para guiarem suas vidas e seus relacionamentos afetivos. Neste mesmo curso que mencionei, no momento de apresentação do grupo, pelo menos 1/3 dos participantes falou, com bastante naturalidade, que estava em uma fase de transição de carreira. Também notei que muitos usavam conscientemente o verbo “estar” ao invés de “ser”: “Estou jornalista freelancer”, “estou casada com Maurício”, “estou unindo meu talento de escrever com minha paixão por viajar”. Há alguns anos, tive um brilhante colega de trabalho na área de Marketing – e que hoje lidera uma empresa no ramo de saúde – que havia sido médico, um promissor cirurgião ortopédico, durante a primeira década da sua carreira profissional. No século XIX, estas mudanças radicais ou gradativas de ofício simplesmente não aconteciam, ou eram recebidas com bastante estranhamento. Uma vez médico, para sempre médico.
No campo dos relacionamentos afetivos, também vemos cada vez mais exemplos desta fluidez. Tenho uma amiga muito querida que formou uma família linda, sólida, que admiro bastante. Ela e o marido se amam profundamente e corajosamente assumiram um para o outro desejos que os habitavam e tomaram juntos algumas decisões para um relacionamento mais aberto. Sendo bem sincera, não sei como funciona na prática (pois não entrei nestes níveis de intimidade) e imagino que de vez em quando possa parecer uma montanha-russa, mas sei que encontraram um jeito bastante autêntico de viver– e parecem ser genuinamente felizes no casamento.
Claro que há escolhas que ainda são – e sempre serão – excludentes, como por exemplo a escolha por ter filhos. A decisão consciente de criar alguém é um mergulho eterno. Um pai nunca deixará de ser. Uma mãe nunca deixará de ser, mesmo que seu filho já tenha batido asas para o mundo. Mas há diversas outras grandes decisões de vida que já não são mais eternas ou que de alguma forma permitem um caminho do meio. Claro que estas novas liberdades criam também novos desafios e dificuldades, mas possivelmente, Kierkegaard faria suas escolhas com muito mais leveza caso tivesse que fazê-las na atualidade. Mas talvez, por isto mesmo, não nos legaria tão bela filosofia!
Shelly Bronstein – Autoterapia