Lia – Parte II
A arrumação da estante lhe ocupara a maior parte do tempo na tarde que se findava. Não notara, mas já passava das seis. A estranha sensação de ainda estar desarrumada, por volta daquele horário, terrivelmente lhe sobreveio.
Um susto, subitamente, percorreu-lhe as espinhas. Era o barulho da porta que anunciava a chegada de Daniel. Lia colocou, rapidamente, o retrato em cima da prateleira mais próxima e se dirigiu para o quarto. Precisava estar impecavelmente bela, não demoraria a sair do banho para que Daniel sentisse o frescor do seu novo perfume.
E assim fez Lia, embora Daniel não o tenha notado. Interessava-lhe mais, ao chegar do trabalho, recostar-se no sofá verde de veludo, apoiando um dos travesseiros nas suas costas, e se ocupar em ler as notícias do jornal do dia.
Na mesa de jantar, não houve variações na conversa. Mais uma vez Daniel falava sobre a atuação dos políticos e como só o que sabiam fazer era nos roubar. Roubar… como um estalo veio esta palavra na cabeça de Lia. Os seus olhos, por alguns segundos, desviaram-se de Daniel e se voltaram para as paredes da sala. Enquanto Daniel falava, Lia fitava as paredes vermelhas que permaneciam imóveis. De repente, um pensamento lhe prendeu a atenção:
“E se não existissem paredes, o que seria dessa sala?”
O jantar terminara. Daniel se recolhia no seu quarto e Lia recolhia os pratos sujos da mesa. No momento que os lavava foi invadida pelo mesmo pensamento que prendera a sua atenção minutos antes. Por detrás das paredes pode não existir nada ou pode existir a liberda… O seu pensamento foi interrompido porque nesse momento Lia deixou cair o prato que segurava nas mãos.
O prato, ao se estilhaçar no chão, fizera-lhe alguns cortes no pé esquerdo. O sangue se pôs a derramar sobre o seu pé. Vermelho, como as paredes da sala – Pensou Lia, antes de começar a limpar a bagunça que se instalara na cozinha.