“_Finalmente, acabou para nós! _Não, não acabou!”
Uns óculos pousados sobre documentos numa mesa. Uma fotografia de um time de beisebol ao lado de uma bola de beisebol. Películas. Flores azuis. Megalópole. Fórum… Assim começa O Juiz (The Jugde), um filme jurídico norte-americano brilhante.
Num tom melancolicamente irônico, O Juiz é estrelado por Robert Downey Jr. (O Homem de Ferro) e narra à história de um advogado alfa, bem-sucedido e sarcástico, Hank, que retorna a sua cidade natal provinciana para o velório de sua mãe e descobre que seu pai, o juiz, é o principal suspeito dum atropelamento com vítima fatal que ocorreu naquele mesmo dia. Embora tenha um relacionamento conflituoso de amor e ódio com seu pai ele decide fazer sua defesa por considerá-lo inocente: “Meu pai é muitas coisas desagradáveis, mas assassino não é uma delas.”. Será? E a tempestade?
Nesse trailer o personagem interpretado pelo talentoso Robert Duvall incorpora a figura clássica do austero e autoritário “juiz júpiter” que na vida tratou seu indomável filho do meio, o advogado Hank, como se fosse um réu culpado e foi tratado por ele como se fosse um juiz injusto. Contudo há um inconfessável amor reprimido entre os dois, uma chaga incicatrizável que supura em silencio. O amor é uma montanha-russa porque ainda não aprendemos a amar com ética sob o signo da sagrada “lei da liberdade” e confundimos amor com propriedade. Um erro de amadores que coloca o afeto amoroso na mira de uma morte violenta e precoce. No caso em tela é sempre difícil o diálogo entre pai e filho recortado por ressentimentos que apodrecem o amor.
Eis o caso: o juiz está sendo acusado de matar um homem que no passado ele condenou a 20 anos de prisão por assassinato e que o provocou perversamente no dia da morte de sua amável esposa. Porém, o juiz, um homem espantosamente ético, sofre de amnésia devido aos efeitos colaterais do tratamento de quimioterapia contra o câncer ao qual está se submetendo e até mesmo ele não tem certeza sobre ser ou não ser o autor do crime. Todavia, as provas produzidas contra ele pela promotoria são o que os juristas denominam de “provas diabólicas” e ele não tem um álibi sólido. O juiz será inocente ou culpado? Como saber, se nem ele sabe!? No mundo do Direito há um consenso de que é melhor um culpado solto do que um inocente preso. A ironia do filme é solenemente subversiva. O homem que passou a vida inteira julgando os outros agora não é capaz de julgar a si mesmo porque perdeu a memória e desconhece a verdade factual caindo no centro duma batalha jurídica e sendo representado pelo filho que “detesta” tornando-se assim a crise legal uma ponte possível para a delicada arte do apocalíptico amor masculino familiar. O nêmeses nebuloso, o pai, o filho…
O promotor designado para o caso é implacável. Numa feita ele diz para Hank:“Você é bom. O melhor que o dinheiro pode pagar. (…) Ao contrário de você eu tenho uma crença simples. A lei é a única coisa que pode tornar as pessoas iguais.”. Ou seja, não importa quem você seja, se cometeu um crime é juridicamente imperativo que seja legalmente responsabilizado por sua assinatura. A lei é erga omnes (contra todos). Entretanto existe um brocardo jurídico oriundo do Direito Romano que declara “O que não está nos autos não está no mundo.”. O direito é um espelho elíptico da Justiça.
O Tribunal da cidade é lindo, obscuro e imponente. Em nossas vidas voadoras o grande tribunal é a nossa consciência pessoal. É nela que nossas ações e omissões são julgadas e sentenciadas com rigor draconiano. O passado é inescapável. A experiência nos ensina que somos constantemente julgados não pelo o que somos agora, mas pelo o que fomos outrora. Na vida em sociedade testemunhamos tudo e somos juízes e réus uns dos outros. Contudo sempre podemos recusar essa sombra cavernosa e dançar a luz da liberdade. Isto é, sempre podemos escolher viver nossas vidas com soberania e desprezar o julgamento externo enrodilhado em sofismas soezes e anomias antiéticas.
Em crise conjugal, Hank está prestes a se separar de sua esposa infiel com quem tem uma adorável filha, reencontra uma antiga namorada com quem teve uma aguda história de amor inconclusa e quase uma filha que na verdade é sua sobrinha, fruto de uma solitária noite de amor entre ela e seu irmão tímido a quem ele prejudicou gravemente no passado após uma briga, embora tenha se arrependido. (“Lances de família” como dizia Clarice Lispector.). Para variar, sua ex-namorada nada tem de trágica. Ao contrário, é uma mulher lépida, encantadora e emancipada. E o afeto entre eles ressurgi de maneira inesperada e irresistível, pois no fundo nunca se extinguiu (Hank abandonou a cidade na juventude para cursar a Faculdade de Direito e nunca mais voltou magoado pelo fato do pai tê-lo injustiçado num episódio jurídico.). Conclui-se assim com justiça que até os advogados amam até provem o contrário.
Homens de leis, juízes, advogados e promotores são seres duplos. Ursos autocentrados em seus escritórios e ambientes de trabalho laborando numa causa, são aqueles homens responsáveis pela solução das lides alheias (funâmbulos tentando se equilibrar na corda oscilante entre a ética profissional e a justiça estatal), e, concomitantemente, seres sociais que precisam jogar o jogo jurídico nesse mundo maquiavélico. Assim, sua profissão é nobre em sua essência: fazer justiça através da lei, garantir os direitos humanos e manter a ordem social e a paz coletiva. “Ratione officli”- em razão do ofício.
Acima: Passenger- Let Her Go, uma das canções do filme supra
Entre o amor verdadeiro, mas negado, entre a espiral de erros consumados por orgulho, vaidade e egoísmo, entre a telepatia tirânica entre os que se amam e após percorrermos o labirinto das leis qual é o veredicto do julgamento? Terão que assistir ao filme para saber, queridos leitores, e talvez se surpreendam. “Idolatrem a dúvida” dizia um antigo sábio. Contudo uma das lições do filme é inequívoca: “Minha experiência, Hank. Às vezes, você tem que perdoar para ser perdoado.”. Assim é a vida. Assim é o Direito. E assim é o amor, esse sentimento sagrado, por vezes, furioso, contraditório e indeclinável. Justiça seja feita. Porque sem justiça a vida não vale à pena. É uma pena.
Aquela cadeira giratória…
“Fui duro com você? Sim! Eu fiz o que achava certo!” O juiz