DOMÍNIO DO DIREITO – CAPÍTULO 3 – PARTE 1: JUSTIÇA RESTAURATIVA, O FUTURO DO DIREITO PENAL

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A Justiça Restaurativa corresponde a uma proposta de solução pacífica das controvérsias aplicada ao Direito Penal. Seu método consiste num diálogo restaurativo entre as partes afetadas pelo crime visando à responsabilização do infrator, a restauração do dano causado à vítima e a reintegração psicofísica de ambos a sociedade, além da reparação do equilíbrio civil, prevenção da reincidência do crime e preservação da paz pública.

MUDANÇA DE MENTALIDADE PARA UM NOVO PARADIGMA PENAL

Com a evolução histórica das penas e o desenvolvimento dos direitos fundamentais no Brasil atingindo seu ápice com o Estado Democrático de Direito sob o sol da Constituição Cidadã de 1988, presidida, por assim dizer, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, tornou-se um imperativo jurídico desde então a defesa dos “Direitos Humanos” e a proteção dos direitos e garantias fundamentais de “todos” em solo brasileiro, expresso na cláusula pétrea: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”.

Assim, conquistamos a proteção do cidadão envolvido na lide penal. Na dicção da Constituição: “assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral”, ao contrário do que prefeririam os xiitas jurídicos (indivíduos radicais) adeptos do Direito Penal do Inimigo (teoria retributiva extremosa assinada pelo doutrinador alemão Günther Jakobs que preconiza a cassação de direitos e garantias fundamentais de criminosos, “os inimigos do Estado.”). Para dizer tudo: trocamos vingança por justiça. Afinal, a pena tem como objetivo, não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública, isto é, o criminoso padece a sanção para ser dissuadido a retornar a delinqüir e servir de exemplo aos outros os desencorajando a cometerem crimes. Desde Cesare Becare (1738-1794, considerado o expoente supremo do iluminismo penal e autor da formidável e revolucionária obra “Dos delitos e das penas”) concluímos que apenas indivíduos que representem séria ameaça à sociedade devem ser encarcerados. Aos outros, devem ser aplicadas medidas alternativas de punição como indenizações e prestações de serviço a comunidade.

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Destarte, doravante faz-se imprescindível a construção de um sistema eficaz de justiça e não um instrumento de segregação, estigmatização e simples opressão ao crime cometido. Eis o argumento da razão de existir da Justiça Restaurativa em face da Justiça Criminal Convencional. A Justiça comum ao contrário da Justiça Restaurativa não repara o dano material e imaterial (moral, emocional ou simbólico) causado a vítima, nem ressociabiliza o delinquente ou garante a segurança social, pelo contrário, a vingança estatal inexorável retorna para a coletividade em forma de reincidência do condenado, além de ser exorbitantemente onerosa para o tesouro público. A Justiça Restaurativa está no centro da tentativa de renovar o Sistema de Justiça Criminal como um todo através da promoção de uma mudança cultural para um novo paradigma penal.

O sociólogo americano, Howard Zehr, reconhecido mundialmente como um dos pioneiros da Justiça Restaurativa em seu visionário volume “Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça”, afirma categoricamente: “a lei penal é de fato a lei da dor, pois se trata de um elaborado mecanismo para administrar doses justas de dor”. Porém, essa dor é, em si, uma violação do principio fundamental da dignidade da pessoa humana. Afinal, o Direito Penal é a última ratio (último razão ou recurso), não a primeira nem tampouco é a melhor maneira de corrigir choques civis. Assim, na via inversa dessa proposta retributiva decadente e infecunda situa-se a abordagem magna da Justiça Restaurativa que segundo elucida o juiz Eduardo Resende Melo, ao contrário da Justiça Retributiva, a Justiça Restaurativa é horizontal e pluralista, reconhece as idiossincrasias dos participantes, investiga o motivo da conduta criminosa, altera a resposta estatal ao crime de impessoal e abstrata para pessoal e participativa, muda o foco do fato do passado para o futuro e aperfeiçoa e humaniza o Direito Penal tornando-o corresponsável pela condição de seus cidadãos.

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Justiça Retributiva versus Justiça Restaurativa

Abaixo: enumeração em que Renato Sócrates Gomes Pinto compara a Justiça Retributiva com a Restaurativa (Carta Forense, n. 51, agosto de 2007, p. 45):

JUSTIÇA RETRIBUTIVA

1.O crime é ato contra a sociedade, representada pelo Estado; 2. O interesse na punição é público; 3. A responsabilidade do agente é individual; 4. Há o uso estritamente dogmático do Direito Penal; 5. Utiliza-se de procedimentos formais e rígidos; 6. Predomina a indisponibilidade da ação penal; 7. A concentração do foco punitivo volta-se ao infrator; 8. Há o predomínio de penas privativas de liberdade; 9. Existem penas cruéis e humilhantes; 10. Consagra-se a pouca assistência à vítima; 11. A comunicação do infrator é feita somente por meio do advogado.

JUSTIÇA RESTAURATIVA

1. O crime é ato contra a comunidade, contra a vítima e contra o próprio autor; 2. O interesse em punir ou reparar é das pessoas envolvidas no caso; 3. Há responsabilidade social pelo ocorrido; 4. Predomina o uso alternativo e crítico do Direito Penal; 5. Existem procedimentos informais e flexíveis; 6. Predomina a disponibilidade da ação penal; 7. Há uma concentração de foco conciliador; 8. Existe o predomínio da reparação do dano causado ou da prestação de serviços comunitários; 9. As penas são proporcionais e humanizadas; 10. O foco de assistência é voltado à vítima; 11. A comunicação do infrator pode ser feita diretamente ao Estado ou à vítima.

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Contudo, a matéria é complexa e polemica. Como sagazmente observa Guilherme de Souza Nucci, Ed. Revista dos Tribunais, sinalizando uma espécie de sincretismo jurídico-penal moderado em que uma Justiça ao invés de anular a outra a complementaria de acordo com o caso concreto:

“Há crimes que merecem punição, com foco voltado mais à retribuição do que à restauração (ex.: homicídio, extorsão mediante sequestro, tráfico ilícito de entorpecentes). Outros, sem dúvida, já admitem a possibilidade de se pensar, primordialmente, em restauração (ex.: crimes contra a propriedade, sem violência; crimes contra a honra; crimes contra a liberdade individual). Nenhuma solução em favor desta ou daquela Justiça (retributiva ou restaurativa) pode ser absoluta. Se a retribuição, como pilar exclusivo do Direito Penal e do Processo Penal, não se manteve, não será a migração completa para a restauração que proporcionará a tão almejada situação de equilíbrio.”

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Os críticos mais cruéis (e equivocados) da Justiça Restaurativa, essa Super-nova do Direito Penal, argumentam que seu procedimento não passa de uma “jogada jurídica”, fere o devido processo legal e oferece um grande risco a segurança jurídica além de poder mascarar a impunidade. Alcunharam-na de “Justiça de índio” ou “Justiça Romântica”, uma vez que promove a DR (discussão de relação). Já seus defensores apaixonados contra-argumentam que “Quem não comunica se trumbica.” (Chacrinha) e que a Justiça Retributiva é retrógada, elitista, reducionista e degradante e que já deveria ter delegado poderes a instrumentos mais eficazes de resolução de conflitos, se não fosse pela irrefletida rejeição da opinião pública, os apelos sensacionalistas da mídia mercenária e a ininteligível resistência interna dos caciques do Judiciário. Sobre esta última, Gomes Pinto lança uma luz sobre o motivo, dando a entender que é fruto da vaidade e do medo da perda da autoridade e status social e prestígio jurídico por parte de alguns astros e manda-chuvas do Direito:

“Contudo, esse empecilho cultural é clarividente e mais intenso dentro do nosso Poder Judiciário. Como a justiça penal tradicional corresponde a uma imposição unilateral e verticalizada da norma positiva, impregnada de um formalismo inútil protagonizado pelos juízes togados em nossos pretórios, cuja pena de prisão é vista como manifestação de autoridade, há um rígido bloqueio por parte do Estado-Juiz em aplicar medidas alternativas.”

Em suma: é preciso persuadir o Poder Judiciário e a opinião pública das vantagens e diferenciais da Justiça Restaurativa e reeduca-los para uma cultura de paz, a compreensão de que o crime é um produto do meio e não um incidente estanque e para a ideia de que restaurar, curar, orientar e prevenir é melhor, mais eficaz, inteligente e humano do que simplesmente vigiar e punir, o que, em geral, só atinge aos excluídos sociais, “os seres invisibilizados.” e olvidados em nosso contexto cotidiano caótico. Para o Dr. Egberto Penido, especialista em Justiça Restaurativa “A violência é uma resposta trágica a uma necessidade não atendida.”. Num poema sublime “Quatro Quartetos” o grande poeta americano T.S.Eliot verseja: “Tudo quanto herdamos aos afortunados/ tomado foi por nós aos derrotados”. Mas como mudar moralmente corações e consciências? Como vencer o silêncio e a surdez cívica dos privilegiados e eliminar o desamparo e a solidão social dos desprivilegiados? Tolerância, bondade, empatia e compaixão, a saber, não fazem mal a ninguém. Pelo contrário, é o que falta a este mundo miserável, sadomasoquista, hedonista e impassível.

Numa publicação da Secretaria de Reforma do Judiciário coligindo diversos artigos sobre Justiça Restaurativa a contracapa trazia os seguintes questionamentos: “Pode a Justiça Restaurativa ser bem-sucedida em países como o Brasil, onde o acesso a Justiça permanece limitado para a maioria dos cidadãos e comunidades, e onde o sistema formal de Justiça tende a perpetuar mais do que eliminar as abomináveis desigualdades sócio-econômicas já existentes?”

(Continua…)


Thiago Castilho

Advogado e escritor, um homem de leis e letras. Acredito que a arte pode “ensinar a viver”. Ensinar a viver significa ensinar a lutar pelos seus direitos e a amar melhor a si e a toda humanidade. Adquirir o conhecimento e transformá-lo em sabedoria de vida no palimpsesto do pensamento. Eis meu ideal intelectual que busca realizar a experiência do autoconhecimento, não sei até se do absoluto e talvez do Sublime aplacando assim minha angústia existencial, sem soteriologia, porque ao contrário de Heidegger não acho que somos seres-para-a-morte, mas seres-para-a-vida e seres-para-o-amor.

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