Não pretendo negar os inúmeros benefícios proporcionados pelo sol. Não discordo da teoria de que em países frios os índices de depressão são maiores. Quero apenas dizer que faço parte de uma minoria incompreendida que se sente feliz em dias de chuva.
Os dias cinzentos e frios, com uma chuvinha fina, podem nos obrigar a uma postura mais reflexiva diante da vida e diante de nós mesmos. Um dia frio pede um bom livro, um filme mais introspectivo, uma conversa intimista.
Os dias cinzentos e frios podem ser uma boa oportunidade para olharmos para dentro de nós mesmos. Podem ser uma oportunidade para fazer uma leitura mais complexa, estudar um assunto qualquer, escrever, transformar pensamentos vagos em palavras consistentes.
Os dias cinzentos e frios facilitam a intelectualidade, o gosto por uma música clássica, um filme antigo. Ver um suspense de Hitchcock numa tarde cinzenta pode ser bem inspirador . Assistir a um épico enrolado em um cobertor pode ser bem aconchegante. Um filminho de terror, mais assustador. E se olharmos pela janela do metrô num dia frio, ouvindo uma música instrumental, as pessoas se movimentando na plataforma com seus casacos e guarda- chuvas nos parecerão dançarinos executando uma espécie de coreografia.
Tomar um café fumegante ou um chocolate quente num dia frio é saboroso. Se num dia ou noite fria não é possível tagarelar ao redor de uma mesinha ao ar livre com um copo de cerveja gelada na mão, é delicioso tomar um chocolate com rum num barzinho alternativo ou uma taça de vinho barato ao som de um jazz ou de um blues. Os dias frios e cinzentos me trazem um gosto de boemia à boca e na alma tudo parece fazer mais sentido.
O frio nos convida ao romance, ao olho no olho. Não existe tanta pele à mostra. Somos obrigados a focar no essencial: no movimento labial, no leve rubor do rosto depois de uma lufada de vento frio ou do falso constrangimento após uma piada picante. Temos que nos concentrar no brilho dos olhos, no arquear das sobrancelhas, uma mecha de cabelo escorregando pelo rosto.
O frio nos pede para ler a pilha de jornais do canto da sala sob a tépida luz do abajur do quarto. O frio acalma o corpo e agita a alma. E tudo o que acontecia do lado de fora, nas praias , nos bares, nas piscinas públicas, começa a se desenrolar dentro de nós.
Em dias frios testamos novas receitas, temos mais apetite, uma boa desculpa para uns dois ou três copos de vinho a mais. Podemos beber sem transpirar, andar na rua nos sentindo frescos. Podemos andar no metrô nos sentindo protegidos . O contato do outro não irrita tanto.
Em dias frios, podemos sentir uma paixão melancólica por tudo aquilo que mais queremos e nos lembrar com uma doce pontada de dor dos amores perdidos. Nenhum sentimento parece vão ou tolo num dia de chuva. Tudo é revivido na alma ao som das lembranças tépidas.
Em dias frios e de chuva, as tolices de amor viram atos heroicos e não nos arrependemos de ter ofertado nosso coração numa bandeja de prata junto com o chá e as torradas. Num dia de chuva é possível tomar uma caneca fumegante de chá inglês , lendo Jane Austen e se sentindo Lizzy Bennet. Num dia de chuva é possível ler Jane Eyre e sentir o frio doer nos ossos como as pobres meninas do orfanato.
Em um dia frio e de chuva, ninguém diz “eu sou mais eu”. Todo mundo relembra o passado e chora as suas lágrimas. Todo mundo sente saudade de algo. Tudo mundo fica mais sensível, mais romântico, mais dolorido, mais humano. A alegria pura sem uma pitada de melancolia me parece um pouco fútil. Sim, amo a delicadeza de alma que os dias frios e de chuva trazem.
Não, este post não é triste. Este post foi escrito por alguém que realmente ama baixas temperaturas e dias cinzentos. Olho pela janela com uma xícara de café fumegante nas mãos. Sinto possibilidades infinitas brilharem em meu coração.