Um triângulo amarelo com um T em negrito tornou-se a polêmica da vez no Brasil. Por 320 votos a 135, a Câmara dos Deputados aprovou no final de abril um projeto de lei que permite a retirada da informação visual capaz de identificar a presença de alimentos geneticamente modificados nos rótulos de produtos como óleo de soja, fubá, maisena, salgadinhos e outros artigos encontrados na mesa do brasileiro.
Esse novo round que divide políticos, cientistas, ambientalistas e empresas faz parte de uma queda de braço que começou em 1998, quando a soja Roundup Ready, modificada pela gigante da biotecnologia norte-americana Monsanto, foi aprovada para comercialização e plantio em território nacional. Uma ação judicial, no entanto, bloqueou o uso do grão, e só em 2003, por meio de medida provisória assinada pelo governo federal, a liberação dessa e de outras culturas foi finalmente aprovada.
Afinal, por que os alimentos transgênicos despertam tanta polêmica?
Juliano Bicas, professor da faculdade de engenharia de alimentos da Unicamp, dá tons literários para explicar o tema. “O gene de um alimento carrega uma informação, como se fosse uma frase de um livro, escrita em linguagem universal entre os organismos vivos”, diz. “Dessa forma, é possível que se transfira uma frase de um livro de Machado de Assis para um livro de Manuel Bandeira. As pessoas podem até perceber que o novo trecho não é original daquele livro, mas nada impede que o texto seja lido com sentido.” Alguns pesquisadores poderiam dizer que a mistura das boas qualidades literárias de Manuel Bandeira e de Machado de Assis produziria um romance absolutamente impecável. Os críticos, por outro lado, considerariam que a manipulação artificial teria consequências indefinidas. Mas, ao contrário de um livro extremamente ruim, o receio em relação à produção em escala cada vez maior de alimentos transgênicos tem a ver com potenciais ameaças à saúde, com o desenvolvimento de doenças como o câncer, ou com a ameaça à biodiversidade por conta da evolução de superpragas capazes de destruir plantas geneticamente modificadas e todas as suas companheiras “normais”.
Até o biólogo evolucionista britânico Richard Dawkins se posicionou sobre os X-Men da agricultura, que prometem produtividade de alimentos para uma população que não para de crescer. “Os humanos fazem engenharia genética há centenas de anos. Temos plantas e animais que são muito diferentes de seus antecessores, e fazemos isso com seleção artificial”, disse Dawkins durante palestra realizada no Brasil para o Fronteiras do Pensamento. “Mas você não faz coisas que podem causar desastres, essa é uma questão ética importante.” Resta saber se essa ética científica capaz de impedir a seleção artificial de genes humanos com superqualidades também se refletirá no cuidado com os alimentos que garantem nossa sobrevivência.
(Foto: Rodrigo Damati)
Selo da discórdia
Retirada de símbolo foi criticada por entidades de defesa do consumidor
De autoria do deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS), o Projeto de Lei 4148 estava em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2008 e foi resgatado este ano durante o mandato de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), novo presidente da casa. Aprovada por 320 votos a 135, a lei prevê a retirada da identificação visual dos produtos que contêm alimentos transgênicos e também suspende a necessidade da informação no rótulo da espécie doadora do gene que modificou o alimento original. Se detectado em análise laboratorial, produtos com índice de transgenia superior a 1% deverão exibir um texto informativo em letras com tamanho mínimo de um milímetro. Para o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), a lei viola o direito de exercer a livre escolha de compra. “O símbolo tem um poder de mensagem muito mais forte que uma expressão escrita, e a sua retirada limita o entendimento do consumidor”, afirma Renata Amaral, pesquisadora do Idec. “Caso a lei seja aprovada, o consumidor ficará completamente suscetível às informações que a indústria de alimentos quiser passar.”
Em defesa do projeto, que seguirá para votação no Senado, Heinze argumentou que não há determinação específica de informação nas regras de rotulagem estabelecidas por organismos como o Mercosul ou a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Seu ponto de vista, no entanto, não é unânime entre os deputados federais. “Foram justamente os que dizem que transgênicos não oferecem risco algum para a saúde que trabalharam para retirar dos rótulos a informação. Não é contraditório?”, diz o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ), contrário ao projeto de lei. Procurado pela reportagem, Heinze não se pronunciou até então.
A produção de alimentos acompanhará o crescimento da humanidade?
A matemática é simples: de acordo com dados divulgados pela FAO, nosso planeta deverá abrigar 9,6 bilhões de pessoas até 2050. Será necessário um crescimento de 70% do total de terra cultivável para produzir alimentos em quantidade suficiente para todos, com investimentos estimados em US$83 bilhões anuais. Para superar esse gargalo, o desenvolvimento de transgênicos em larga escala é defendido pelas empresas de biotecnologia, mas não é uma unanimidade entre especialistas. “É necessário fazer um balanço da agricultura moderna porque as monoculturas são insustentáveis do ponto de vista ecológico e se contrapõem a um dos princípios básicos da natureza: a diversidade”, afirma Paulo Brack, professor do departamento de botânica da UFRGS.
A agricultura orgânica, que não utiliza agrotóxicos nem sementes geneticamente modificadas em sua produção, é um contraponto a esse modelo, mas ainda não consegue competir com as grandes plantações. “O alimento orgânico é um segmento de mercado, você não consegue uma produtividade elevada, e o preço é alto”, diz Mateus Mondin, professor do departamento de genética da Esalq. “Minha preocupação é com a fome no mundo, e esse problema não se resolve com um segmento de mercado.” Para o pesquisador, no entanto, a aplicação de algumas técnicas orgânicas ajudaria a agricultura tradicional até que a ciência consiga equilibrar a relação entre sustentabilidade e produção. “Não acredito que o transgênico seja definitivo, aparecerão alternativas dentro de dez ou 20 anos, porque essa é uma tecnologia cara e frágil.”
Fonte: Revista Galileu